segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Armadura

 

Meu corpo é a única coisa que tenho
que é nada
e como suicida
luto contra moinhos, tempestades e solidão
que é tudo.
Escondo-me nesta armadura de ossos, carne
e vestimentas
e espio a vastidão do mundo pelos buracos dos olhos
como quem espia lugares estranhos
infinitos
perigosos.
Meu corpo é a única coisa que tenho
para carregar o pretexto da alma.
É magro, feio e escandaloso
o corpo
mas é única coisa que tenho
para caminhar pelo tempo e pelos sertões.
Garantia não tenho
se o meu corpo é forte e frágil ao mesmo instante
se me sujeito ao abismo
ao chão
à poeira
se estou marcado para me tornar saudade
lembrança
e fotografias
e minha história não terá mais
um cavalo para montar
e serei uma estátua invisível no espaço.
Garantia não tenho de nada
nada
não levarei escondido no bolso
nenhuma semente
nenhum suspiro
nenhum gesto
pois tudo é podre
condenável
consumível.
Só é garantido o mais difícil:
a miragem na imensidão
o que se supõe ao longe
o completo mistério
para se chegar até lá
não se sabe com que corpo
não se sabe com que asas
não se sabe.
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Poema publicado no livro Poesia provisória, Editora Radiadora, 2019
Prêmio Internacional Pena de Ouro, 2022
Casa Brasileira de Livros, RS
3º lugar
Pena de Ouro é um concurso para contos e poemas, interagindo com autores de toda a lusofonia.
Os textos finalistas são avaliados por jurados do Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

migrante


IV

no começo da terra vermelha e cidade
meu pai passou por aqui
enquanto juscelino passava em seu jeep
adubou concreto
elevou colunas
estendeu asas:
o sonho avesso de pau a pique
de vastidão por imensidão
de cerrado por sertão
entorpecido de poeira e saudade
um dia subiu no pau de arara que voltava
sob o olhar franzido de juscelino
preferiu
o abraço de minha mãe
o leite ralo das cabras
e a esperança de sol a pino
- Poema do meu livro em preparação A paisagem e a distância - escritos sobre Brasília.
Foto ilustrativa para esta postagem: Candangos, 1957, de Mário Fonteneles.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

escritores à beira de mais um sonho


sobre viver

I
só escaparemos se conversarmos
se sentarmos
à mesma mesa
e trocarmos olhares
como amigos
ou como sobreviventes.
viver
(não se sabe)
é mais um sonho
mais um ofício...
modelar o dia
atravessar a noite
(não se sabe)
carece de sonho
tem jeito de ofício...
sonhar
(não se sabe)
é coisa de ofício
ou o ofício nada vale
- é apenas um sonho?
Poema do meu livro em preparação A paisagem e a distância – escritos sobre Brasília.
Na foto, à mesa e sobrevividos, os escritores Lima Trindade, Noélia Ribeiro, eu, Nicolas Behr, Alcina Behr, Alex Cojorian, Marcelo Frazão e Wilton Rossi.
Bar Beirute, 107 Norte, Brasília, depois de um dia modelado, atravessando a noite nesta “cidade que foi feita para impressionar os arqueólogos do futuro”, como digo em outro verso.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

eu viajei de trem


O menino nos leva pelo braço a visitar a sua Crateús, a casa da dona Valderez e do ‘seu’ Francisco e a revisitar - com olhos mais atentos - a nossa Fortaleza. Diz o poeta Valdi Ferreira Lima, no prefácio, que "todas as vezes que Nirton fecha os olhos a memória germina". Eu embarquei nesse Trem da Memória, de onde não consigo mais sair, atravessamos juntos os trilhos noturnos sobre o rio Poty "rumo ao mar da capital onde este poema se acende".
"Agora só resta crescer.
Se não trago o menino de volta,
alcanço o homem e sua revolta"
"Puxo os vagões da memória até quando?
O poema não acaba nunca".
Dia desses eu li um texto, um recorte do Trem da Memória, quando ele ainda estava em construção. Lembro de ter ligado pro Nirton com a voz embargada. Ele estava em Brasília, conversamos por um bom tempo sobre o texto, sobre lembranças, memórias, sobre a vida! Esta semana recebi o livro pelo correio (como é bonito!). Grata pelo presente, pela presença e por toda poesia que me atravessa quando leio os seus versos. Você é imenso, Nirton Venancio!

Marta Pinheiro, produtora cultural, poeta (Ceará)
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Trem da memória
Editora Radiadora, 2022
Coordenação Editorial: Alan Mendonça
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
Concepção de capa: Léo de Oliveira e Alan Mendonça, sobre pintura de Joseph M. W. Turner
Revisão: Galileu Viana
Impressão e acabamento: Expressão Gráfica, Fortaleza 

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

luz dos olhos teus



 Santa Luzia iluminava
a minha infância que dormia.
Nas manhãs quentes do interior:
o facho de luz vindo da telha quebrada
(o menino na rede,
a parede azulada
a cenografia do quarto
:
o enquadramento que me guardava
no passado
que vi do futuro).
A jovem siciliana que minha tia-avó trouxe da feira
protegia meus olhos que acordavam
focava sua luz neorrealista
no quintal em mim
para o dia que começava
no sertão sem fim.
Cada manhã abençoada
com a oferenda do par de olhos na bandeja.
Casa desfeita
parentes idos
santa nas retinas.
Na parede azulada,
esse recorte é o quadro que brilha mais
no meu cinema paradiso.
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Trecho do meu livro Trem da memória, Editora Radiadora, 2022,
lançado em julho no Espaço Cultural da Kraft, Fortaleza, em setembro no Beira Cultural do Bar Beirute, Brasília, e em novembro na XIV Bienal Internacional do Livro do Ceará.
Coordenação editorial: Alan Mendonça
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.
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13 de dezembro, dia de Santa Luzia.

domingo, 4 de dezembro de 2022

um trem além-mar


 "Gosto muito de Portugal, mas onde vou é acompanhado de boas leituras. Estou viajando no 'Trem da Memória'. O Porto é um encanto. Terminei meus estudos. Volto em janeiro."

- Rosemberg Cariry, cineasta e escritor, companheiro de geração nas letras, nos sets, pelos sertões de resistência que viraram o mar de cada dia.
Para ele dedico um trecho do meu livro em suas mãos. Versos que legendam a foto e auscultam o coração da viagem:
"verbo indicativo presente:
enfrento a estrada
frágil
apenas
com o escudo do corpo
e uma história na pele.
Resisto:
nos poros
o calor do sol
de tantos nordestes
para me garantir
nos próximos frios de algum país futuro."