quinta-feira, 29 de novembro de 2007

desmontando as tardes

foto Mario De Biase, Circo, 1955

Eu podia ver o circo da janela do terceiro andar. Ali defronte, no terreno por onde os cachorros circulavam. Nunca desci nas tardes de sábado e manhãs de domingo para assistir a uma das sessões anunciadas no serviço de som que arranhava os ouvidos. Não porque era um circo pequeno: o que eu gostava mesmo era ver o circo da janela do terceiro andar.

Um dia começaram a desmontar o circo. Foi quando me lembrei que dias antes anunciaram a última semana com atrações imperdíveis. Desmontavam o circo e desfaziam-se também minhas chances de assistir alguma apresentação se eu mudasse de idéia e descesse as escadas rumo à bilheteria. Da janela acompanhei por quase o dia todo o circo se resumindo a uns poucos caminhões velhos amontoados de tábuas, lonas, grades... e pessoas sonâmbulas sob o sol de segunda-feira.

Minhas tardes passaram a ser mais solitárias no retângulo da janela: não me importava o espetáculo, o que depois aconteceria à noite no picadeiro: o que me segurava os olhos era a vida ao redor da lona suspensa. Eram os artistas sem suas roupas de artistas, as pessoas comuns vivendo na temporalidade dos trailers, no improviso dos lares. Eram os animais tornados comuns na pouca extensão das jaulas. O melhor era aquele espetáculo, que me extasiava e incomodava, visto do meu camarote especial da janela do terceiro andar, tão longe e tão perto.

O circo foi embora e o melhor poderia ter sido mesmo partir: viajar sem ter um passado nos álbuns, ou um futuro agendado. Viajar tendo sempre só o presente que dura algumas semanas, poucas vezes uns meses, nunca muitos anos. Viajar na busca eterna do presente.
As estacas não criam raízes no chão da cidade.
(do livro Outras Prosas)

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

postura

foto Josephine Sacabo

Cada gesto posto no espaço
me subtrai (um pouco) a intimidade.

Mas não há como negar
o tamanho do rosto
e esconder-se da luz diante do espelho.

Tenho (sem saída)
a vida presa aos pulsos
o corpo atracado ao tempo
levando-me neste soluço constante
nesta postura indecente
nesta vontade (sempre!)
de ser feliz.

A idade é pouca
sobre a carne que preciso ter
para descobrir o que esconde
o silêncio de amanhã
e me deixa com as mãos
curiosas
os sentimentos
acesos
o coração
(in) quieto.

Por isso
no estrondo dos dias nas ruas
na solidão das cercas na noite
mantenho o olho aberto
pastorando (e me resgatando a)
cada instante
em que a vida não cochila.


(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

prazo

foto Pablo Hernandez

Impossível
terminar o poema nos próximos dias:
falta uma vírgula aqui >
aguarda um sentimento ali,
avista-se uma cidade acolá.

E essas correções, dores e risos
costumam demorar
uma vida inteira...

(do livro “Poesia provisória”)