segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

dimensional

foto David Fokos

A vida é larga
o mundo extenso

e minhas mãos indefesas
se entregam ao ofício de modelar
cada dia
afagar cada rosto
segurar o remo quando a tempestade
avançar
sobre
nossos cabelos.

Por enquanto
a vida é larga
o mundo extenso

e a minha estranha forma humana
(escondida sob as roupas e as máscaras)
caminha entre os instantes
em que o relógio
divide
a dor e alegria
na pulsação que espanta a fragilidade
do corpo
e do coração.

Sei que no percurso
a vida é larga
o mundo extenso

e o chão do país
arde quilômetros sob os meus passos
as estrelas
faíscam distantes sobre minha cabeça
e a gravidade
dos fatos
(e dos tatos)
me põe em pé
enquanto a terra flutua no espaço
(solenemente)
carregando seus animais.


](do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

luar

foto Kiriko Shirobayashi


Vislumbro uma luz sob a porta.
Ando.
Uma réstia toca a minha pele.

Esqueceram a lua acesa.


(do livro “Raios”)

domingo, 19 de novembro de 2006

transitivo

foto Bogdar Jarocki, 2005

A minha fala
só é
fala
quando
muda.
A minha fala
não é
fala
quando não move.
- aí
ela é muda.

A minha mudez
só é
mudez
quando
fala.
A minha mudez
não é
mudez
quando
não estala
-

ela cala.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

intimidade

foto Jerry Schaltzberg

O teu silêncio é íntimo.
O teu quarto,
a tua roupa pendurada no cabide,
o quadro na parede é íntimo.
Íntimo é o teu olhar,
as tuas lembranças,
a tua saudade,
as tuas cartas rasgadas
nunca mandadas são íntimas.

Uma canção gemida
nos teus lábios
é íntima como o beijo leve,
como o abraço profundo,
como o golpe na lâmina,
como o sangue jorrado.

Íntimo é o teu modo
de pentear os cabelos diante do espelho,
o cortar das unhas,
o escovar dos dentes.
O teu banheiro é íntimo,
mais íntimo é o teu sexo.

As tuas artimanhas
no ventre são íntimas.
O teu medo é íntimo,
o teu suor nas axilas,
o pulsar do teu coração,
o teu sono sobre o travesseiro.

Íntima é a escuridão
da tampa do ataúde
quando na tua carne morta.

Íntimo é o teu depois.

(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

sábado, 4 de novembro de 2006

regime

foto Jonnie Miles


Tenho seus beijos
como medida.
Não ponha açúcar no café.

De doce basta a vida.


(do livro “Raios”)

sábado, 28 de outubro de 2006

dados pessoais

foto Jean-Sebastien Monzani

Cinqüenta e muitos quilos
de idade e fome.
Vinte e tantos e espantosos anos
que a vida pesa em mim.

Do lado esquerdo
o coração incomoda
quando inquilino
quando solitário
e se eu pudesse arrancá-lo
não o faria.

Sou o encontro de duas vogais
entre o menino que se foi
e aquele senhor que se aproxima.
O presente
é esse grito na janela
esse silêncio no quarto
à guisa de forças
para carregar esses anos e esses quilos.

(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

quinta-feira, 12 de outubro de 2006

mimetismo

foto Frank Grisdale

O que passa sobre nós
é cor do dia
feito um beijo no rosto
que marca
que muda o tom
que resguarda a esperança
do que antes foi desgosto.

A renovação das cores
é o que mantém todos os rostos na rua.


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 1 de outubro de 2006

metade

foto Erland Pillegaard

O que se vê em mim
não é o todo:
escondo gestos.
O que se sabe de mim
(ainda) não é tudo:
escondo datas
Metade que nem eu mesmo sei
mais corrói do que vive e cresce:
e silenciosamente é uma doença
(e não me esquece).

Convivo como caça e caçador
dentro de mim:
uma hora me acho
a outra não me aceita
e sou metade do rosto desenhada
a outra metade desfeita.

(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

prazo

foto Alberto Monteiro

Impossível
terminar o poema nos próximos dias:
falta uma vírgula aqui>
aguarda um sentimento ali,
avista-se uma cidade acolá.

E essas correções, dores e risos
costumam demorar
uma vida inteira...

(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

anônimo

foto Nicholas Davies

Eu nunca deixo pistas dos meus pecados.
Escondo meus delitos
e deixo a condenação para a volta.
Estou muito apressado.

Eu nunca deixo atalho
para me descobrirem:
prefiro o próximo encontro
com o que encontrar próximo aos meus olhos.

Eu nunca deixo traços dos meus planos.
Deixo o resultado de tantos enganos
como pudesse ser também seu
aquilo que foi somente meu.

Não passo procuração para sentimentos
enquanto viajo para lugar desconhecido.

Este poema pode me custar a vida.
Pode me custar os amigos.
E me gostarem os inimigos.

Mas não deixarei rascunho dos meus reversos.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 5 de setembro de 2006

carinho

foto Jack Acrey

Minha mão passeia
sobre a fertilidade de tua pele
e não existe nada mais além dessa
eternidade.
Passeia como se voasse
(se pássaro eu fosse
e asas minhas mãos lentas)

mas é vôo
tudo que o amor
neste momento conduz ao sempre.


(do livro “Poesia provisória”)

quinta-feira, 31 de agosto de 2006

asas

foto Bruce Taj

Tirem-me a roupa
o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
que criei pra mim

tirem-me o domingo
a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
que criei pra mim

tirem-me os lábios
o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
que criei pra mim.



(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 25 de agosto de 2006

lençol

foto Dominique Lefort


Cubro
o teu corpo nu
com
o meu corpo nu.


(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

esconde-esconde

foto Jean-Sébastien Monzani

Você troca tudo de lugar
esconde minhas roupas
para quando no amanhecer eu lhe procurar.

Você troca o sol pelo luar
esconde os meus beijos
para não amanhecer quando a noite acabar.

Você troca os cds de lugar
esconde os meus livros
para quando amanhecer eu me desesperar.

Meu peito alcança o seu olhar.
A casa é pequena, o abraço tão largo:
eu sei onde seu coração está.

(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 12 de agosto de 2006

sobre viver

Gil Vicente, nanquim sobre papel, 2002

só escaparemos se conversarmos
se sentarmos
à mesma mesa
e trocarmos olhares
como amigos
ou sobreviventes.

(do livro “A paisagem e a distância – poemas sobre Brasília e outras viagens”)

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

aguardo

foto Lars Ihring

Quando você voltar
estarei com braços
abertos
o coração
exposto
os olhos
sorrindo.

Os meus beijos
secarão suas lágrimas
o meu corpo
aplacará sua febre
e nossas noites
iluminarão os dias.

O que é saudade
será sempre a festa de volta.


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 23 de julho de 2006

impregnados

foto Eric Alan Pritchard

Ele fechou a porta e saiu. Precisava ir embora. Não era o que ele queria: era o que precisava. Não lhe era fácil ouvir o que ouviu e ter de ir embora. Fechou a porta e saiu. Agora as palavras ficaram atrás da porta, lá dentro do quarto. E dentro dele também continuariam. “Não vou tomar banho”, disse ela. Ele ouviu e não entendeu. Ela, com o rosto virado e apoiado nas duas mãos juntas, repetiu baixinho “não vou tomar banho”, como se agora fosse somente para si. Mas ele ouviu as palavras sussurradas no dorso das mãos, ali do outro lado, ela de costas para ele, ele que fixava o olhar no teto. Desprendeu-se, virou o rosto e olhou para ela. O cabelo cobria-lhe a nuca. O olhar dele tentou desembaraçá-los e atravessar até o outro lado, ver o seu rosto, ouvir de novo o que ela falara. “Nunca mais vou tomar banho, nunca mais”, continuou ela. Esboçou um gesto de afago em seus cabelos, não para que ela virasse o rosto, o que poderia ter sido ótimo, e esta história seria diferente, mas ele não fez da intenção um gesto sequer. Voltou o rosto para o teto. “Quero ficar com seu cheiro em meu corpo”, disse ela mais uma vez, alongando-se nas palavras, e foi no momento em que ele fechou os olhos para não ficar mais uma vez fixo naquele branco do teto, naquela lâmpada apagada, naquela luz do dia que começava. Fechou os olhos e as palavras dela entraram mais fortemente em seus ouvidos. “Para sempre... quero ficar com seu cheiro pra sempre”, era quase um murmúrio, mas ele ouviu nitidamente cada palavra, ali do outro lado, com o rosto nas mãos juntas, as mãos por cima do travesseiro fino. Ele não conseguia abrir os olhos. As palavras ressoavam em sua cabeça, se estendiam lentamente lá por dentro e sumiam quando novamente as palavras voltavam, “seu cheiro em mim... pra sempre”. Abriu os olhos, decidira: precisava ir embora: não queria: precisava. Levantou-se e o ruído da cama encobriu uma talvez repetida fala. Ele se vestiu enquanto olhava para ela, ali deitada, confundida entre os panos, a brancura dos lençóis, a extensão da cama que parecia maior agora. Não podia ficar olhando-a, ou ficaria ali. Não queria ir embora: precisava. Virou-se e foi em direção à porta. Abriu lentamente, como se ela estivesse dormindo e não quisesse acordá-la. Fechou a porta e saiu. Precisava ir embora. Não era o que ele queria: era o que precisava. Não lhe era fácil ouvir o que ouviu e ter de ir embora. Fechou a porta e saiu. Agora as palavras ficaram atrás da porta, lá dentro do quarto. E dentro dele também continuariam.

(do livro “Outras prosas”)

terça-feira, 11 de julho de 2006

persona grata

foto Farrokh Chothia

Gratifica-me ver teus olhos:
pássaros castanhos
que voam longe de mim.

Gratifica-me ver teu rosto:
moldura morena
que se guarda longe de mim.

Gratifica-me ouvir tua voz:
teclas de piano
que tocam longe de mim.

Gratifica-me teu jeito de andar:
ave-elegante
que passeia longe de mim.

Gratifica-me sentir tuas mãos:
gestos de plumas
se chegassem perto de mim.

(do livro “Poesia provisória”)

quinta-feira, 6 de julho de 2006

bagagem

foto Edward Dimsdele

Dentro de mim
cabe uma cidade
outra cidade
e mais uma cidade
dentro de mim
cabe o universo
e mais o vilarejo onde nasci

meus pés
arrastam lembranças
espalham o cheiro da terra
soltam o corpo no sorriso
todas as veias
do coração
bifurcam na próxima cidade
e levam ao mesmo rio
diante do sol
abrem o meu olhar
horizontando o dia
.

(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 30 de junho de 2006

desmontando as tardes

foto Mario De Biase

Eu podia ver o circo da janela do terceiro andar. Ali defronte, no terreno por onde os cachorros circulavam. Nunca desci nas tardes de sábado e manhãs de domingo para assistir a uma das sessões anunciadas no serviço de som que arranhava os ouvidos. Não porque era um circo pequeno: o que eu gostava mesmo era ver o circo da janela do terceiro andar.
Um dia começaram a desmontar o circo. Foi quando me lembrei que dias antes anunciaram a última semana com atrações imperdíveis. Desmontavam o circo e desfaziam-se também minhas chances de assistir alguma apresentação se eu mudasse de idéia e descesse as escadas rumo à bilheteria. Da janela acompanhei por quase o dia todo o circo se resumindo a uns poucos caminhões velhos amontoados de tábuas, lonas, grades... e pessoas sonâmbulas sob o sol de segunda-feira.
Minhas tardes passaram a ser mais solitárias no retângulo da janela: não me importava o espetáculo, o que depois aconteceria à noite no picadeiro: o que me segurava os olhos era a vida ao redor da lona suspensa. Eram os artistas sem suas roupas de artistas, as pessoas comuns vivendo na temporalidade dos trailers, no improviso dos lares. Eram os animais tornados comuns na pouca extensão das jaulas. O melhor era aquele espetáculo, que me extasiava e incomodava, visto do meu camarote especial da janela do terceiro andar, tão longe e tão perto.
O circo foi embora e o melhor poderia ter sido mesmo partir: viajar sem ter um passado nos álbuns, ou um futuro agendado. Viajar tendo sempre só o presente que dura algumas semanas, poucas vezes uns meses, nunca muitos anos. Viajar na busca eterna do presente.
As estacas não criam raízes no chão da cidade.

(do livro "Outras prosas")

terça-feira, 27 de junho de 2006

abolerado

foto Leoni Oostvogel

Vagueio dentro do quarto
enquanto meu
coração
passeia longe de mim
e me reparto
entre
o começo e o fim
desta noite em que espero
notícias do dia
no alvorecer que teus olhos dirão
outro grito
outra emoção
que não seja este bolero
em que meu corpo se com
passa
vaguei
ando comigo dentro do quarto
en
quanto meu coração ultra
passa
fronteiras de luzes e portas
para chegar bempertopertode ti.


(do livro “Poesia provisória")

segunda-feira, 19 de junho de 2006

simetria

foto David Fokos


O estender do mar é como o impossível:
o lado de cá
é
sempre
o infinito do lado de lá.

E entender de amar é como o impossível:
o meu lado de cá
é
sempre
o infinito do teu lado de lá.



(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 10 de junho de 2006

presença

foto Cig Harvey


Vivo em ti
todos os momentos de mim.


(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 26 de maio de 2006

vertical

foto Christian Coiqny

O que existem são os meus olhos
numa dimensão
onde os meus sonhos não frustrem os meus pés.
Porque existem os meus pés
e a terra entranhada
e a canção seca dos homens.

Joguei-me do fundo de todo lugar distante
que deu nesta rua abismal.

Das raízes dos dedos dos pés
trago flores nas mãos
e segredo e cuidado.

Não tenho amor platônico pela vida:
nasço e morro exatamente hoje.
Sou marinheiro que parte:
cada dia é um porto que fica.

Ameaçam-me atear fogo
às vestes e às paixões
se eu não calo o canto
se eu não sigo as setas
se eu não cesso os beijos
isso
quando mais ardem
dentro e fora de mim
as vestes e as paixões.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

segunda-feira, 22 de maio de 2006

seletivo

foto Jean-Sébastien Monzani

Quem é você para vender
falsos sonhos e enciclopédias
no terreiro de minha casa?

Tire os seus sapatos:
no meu chão sagrado
só caminha quem tem asas.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 16 de maio de 2006

abstrato

foto Bill Peronneau

No tempo tudo cabe
tudo muda de lugar
tudo some
não ficam parados no espaço
o gosto das frutas
e o cheiro dos homens.

O tempo dispensa a vontade alheia
impõe-se sobre a selva e a cidade
e destas nascem as folhas e os filhos
que o próprio tempo amadurece e faz saudade.

O tempo – enorme! – eleva os deuses
arrasta os homens
e espalha o mistério de uns
sobre a solidão dos outros.

De muito longe o tempo caminha
não como um velho
tão pouco uma criança:
unicamente caminha
- e sugere a esperança
e adormece as rugas.

O tempo não é o mesmo
sobre os aviões e os pássaros:
nas asas de um
é tudo muito rápido
nas asas do outro
é tudo muito livre.

(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 5 de maio de 2006

lembrança

foto Kiriko Shirobayashi

Lembro-me que te olhava
e estavas nua
e não havia por perto
nem roupas nem sombras
que te levassem de volta
à sala.


Ficamos únicos
como uma lembrança
do mesmo quarto
dentro de nós.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 1 de maio de 2006

pronominal

foto Marin

É preciso
que nossos dedos se enlacem
sem necessariamente
que nós em nós se passem.

É preciso
que num eclipse eu desapareça
sem que lhe abandone
e quando a lua passar você me esqueça.

É preciso
que eu tenha seu prenome
sem que lhe substitua
quando assinar embaixo o seu sobrenome.

Por certo:
ninguém ama por decreto.

(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 28 de abril de 2006

aguardo

foto Lars Ihring

Quando você voltar
estarei com braços
abertos
o coração
exposto
os olhos
sorrindo.

Os meus beijos
secarão suas lágrimas
o meu corpo
aplacará sua febre
e nossas noites
iluminarão os dias.

O que é saudade
será sempre a festa de volta.

(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 22 de abril de 2006

cofre

foto Steve Casimiro

Quando quiseres
venhas
e gires com as pontas dos dedos
o meu coração.

Encontrarás
teus segredos nos meus olhos abertos.

Guardo no peito
o íntimo
de quem se achega.



(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 19 de abril de 2006

domicílio

foto Michael Kenna

Não me procure nesse endereço:
meu coração mudou-se.
Pouco resta do antigo inquilino.

A casa está vazia.

(do livro “Raios”)

terça-feira, 18 de abril de 2006

armadura

foto Mário Cravo Neto

Meu corpo é a única coisa que tenho
que é nada
e como suicida
luto contra moinhos, tempestades e solidão
que é tudo.

Escondo-me nesta armadura de ossos, carne
e vestimentas
e espio a vastidão do mundo pelos buracos dos olhos
como quem espia lugares estranhos
infinitos
perigosos.

Meu corpo é a única coisa que tenho
para carregar o pretexto da alma.
É magro, feio e escandaloso
o corpo
mas é única coisa que tenho
para caminhar pelo tempo e pelos sertões.

Garantia não tenho
se o meu corpo é forte e frágil ao mesmo instante
se sujeito-me ao abismo
ao chão
à poeira
se estou marcado para me tornar saudade
lembrança
e fotografias
e me história não terá mais
um cavalo para montar
e serei uma estátua invisível no espaço.

Garantia não tenho de nada
nada
não levarei escondido no bolso
nenhuma semente
nenhum suspiro
nenhum gesto
pois tudo é podre
condenável
consumível.
Só é garantido o mais difícil:
a miragem na imensidão
o que se supõe ao longe
o completo mistério
para se chegar até lá
não se sabe com que corpo
não se sabe com que asas
não se sabe.

(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 17 de abril de 2006

medida

foto Jean-Sebastian Monzani

Caberão no poema
quando
soltos,
os beijos
quando
largos,
os abraços
quando
estradas,
os passos
?



(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 12 de abril de 2006

metade

foto Paul Hendicack

O que se vê em mim
não é o todo:
escondo gestos.
O que se sabe de mim
(ainda) não é tudo:
escondo datas
Metade que nem eu mesmo sei
mais corrói do que vive e cresce:
e silenciosamente é uma doença
(e não me esquece).

Convivo como caça e caçador
dentro de mim:
uma hora me acho
a outra não me aceita
e sou metade do rosto desenhada
a outra metade desfeita.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 11 de abril de 2006

lençol

foto Dominique Lefort

Cubro
o teu corpo nu
com
o meu corpo nu.

(do livro "Roteiro dos pássaros - Remixado")

sexta-feira, 7 de abril de 2006

asas

foto Bruce Taj

Tirem-me a roupa
o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
que criei pra mim

tirem-me o domingo
a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
que criei pra mim

tirem-me os lábios
o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
que criei pra mim

(do livro “Poesia provisória")

quarta-feira, 5 de abril de 2006

parecer

foto Marília Campos

Pode ler
pode guardar
pode rasgar.

Tenho versos para todos os desgostos.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 4 de abril de 2006

anônimo

foto Nicholas Davies

Eu nunca deixo pistas dos meus pecados.
Escondo meus delitos
e deixo a condenação para a volta.
Estou muito apressado.

Eu nunca deixo atalho
para me descobrirem:
prefiro o próximo encontro
com o que encontrar próximo aos meus olhos.

Eu nunca deixo traços dos meus planos.
Deixo o resultado de tantos enganos
como pudesse ser também seu
aquilo que foi somente meu.

Não passo procuração para sentimentos
enquanto viajo para lugar desconhecido.

Este poema pode me custar a vida.
Pode me custar os amigos.
E me gostarem os inimigos.

Mas não deixarei rascunho dos meus reversos.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 21 de março de 2006

rima

foto Marcus Claesson

Oh
dor
dor
dor
que mistério
é esse
que fere a ilusão?

Ah
amor
amor
amor
maior mistério
é este
no meu coração!

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

sábado, 4 de março de 2006

resistência

foto Arno Rafael Minkkinen

Até quando este corpo
vai perdurar com fome?
O que me puxa pelos cabelos
que me mantém em pé?
Até quando este corpo
vai se por resistente?
E até quando terá paciência
essa alma de mover este corpo?

Pela manhã
me embebo de esperanças
pelo dia
me armo de argumentos
e à noite
penduro o corpo no cabide.
A alma vigia em sonhos.

É-me direito catar resistências.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

sábado, 25 de fevereiro de 2006

risco

"Concetto spaziale, attesa", 1963, óleo sobre tela de Lucio Fontana

O que vale
é usar a pa
lavra
e ar riscá-la

o que vale é o risco
junto com a palavra:
a palavra
é mágica
o risco
é surpresa!

o que vale
é saber o que vai dar
o movimento das mãos
(seja o que for:
- casa
- poema
- coração)

se não se joga a
palavra
no ar
nada mais sobra do (teu) corpo
sobre a estrada
pois o que vale é o risco:
risques a estrada

a palavra
é a intenção
que se destinou para
(e não pára) o gesto.




(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 18 de fevereiro de 2006

cofre

foto Steve Casimiro

Quando quiseres
venhas
e gires com as pontas dos dedos
o meu coração.

Encontrarás
teus segredos nos meus olhos abertos.

Guardo no peito
o íntimo
de quem se achega.

(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

foto Virgil Brill

Teu corpo de lã que caminha pela casa
é presença leve como se de tua alma
fossem as asas.

Teu corpo de lânguido caminhar pela sala
é silêncio de neve como se de teus olhos
fosse a fala.

Eu te vejo caminhar tão lentamente
entre as paredes e os meus olhares
que és toda preguiça profundamente
como um pássaro cansado pelos ares.



(do livro “Poesia provisória")

domingo, 12 de fevereiro de 2006

infortúnio

foto Chip Hooper

No escuro
meu coração é um deserto.
No claro nada é tão perto.

Ufa, até a rima é infeliz.

(do livro “Raios”)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

galope

foto Juan Guillermo Escobar

O corpo do homem
é um cavalo
onde a alma põe a sela
e dispara no mundo.

E jogado no mundo
não há como se escapar:
todo passo é decisivo,
todo caminho dá para o norte,
todo corpo é um gibão sobre a alma,
toda vida é o lado externo da morte.

(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

mimetismo

foto Frank Grisdale

O que passa sobre nós
é cor do dia
feito um beijo no rosto
que marca
que muda o tom
que resguarda a esperança
do que antes foi desgosto.

A renovação das cores
é o que mantém todos os rostos na rua.


do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

lembrança

foto Kiko Shirobayashi
Lembro-me que te olhava
e estavas nua
e não havia por perto
nem roupas nem sombras
que te levassem de volta
à sala.

Ficamos únicos
como uma lembrança
do mesmo quarto
dentro de nós.


(do livro "Poesia provisória")

sábado, 14 de janeiro de 2006

harmonia

foto Max Paris

É preciso
um tom sobre o tom:
como o azul
sobre o pássaro
como o meu carinho
sobre o teu.



(do livro “Poesia provisória”)