sábado, 11 de dezembro de 2021

intextualidades


Foi mergulho nas extremidades de sexta-pra-sábado, já era lá pela uma da madrugada. Adormeci por cima dele. Quando acordei, ele estava lá, mas não era o conto breve de Monterroso. Era Nirton Venancio e o seu Poesia provisória.

Um novo livro é desses deslumbramentos sem correspondentes pra mim. E quando a dedicatória fala de um “abraço permanente”, aí a rendição é completa.

O poeta Nirton é imenso em envergadura, abarca as tardes, reconstrói nuvens e seduz em cada verso. “O poeta percebe de forma estranha” e a poeta o percebe como nunca antes, porque ali é tempo de troca: o poema confessional, a confidência, o pacto de confiança.

Aqui, ele aparece brincante e drummondiano: “Vai, Nirton, ser artista da vida”, sendo que o artista nasceu completo e plural, versátil em várias linguagens de fazer-se artista. Pessoa e Tolstói ecoam em “dentro de mim cabem o universo e o vilarejo onde nasci”.

Uma discreta Noémia de Sousa passa por ali:
“Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música...”

Eu que já intertextualizei com ela, dou o ar da minha graça:
levem o que já não me serve
mas deixem-me a poesia
aquela que me ressuscita
do dia em que eu morri

E Nirton:
“Tirem-me até os braços, as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas que criei pra mim”

Que força é essa que une poetas de outros tempos e espaços numa madrugada insone?

“Da janela do oitavo andar vejo as solidões.”
O meu “Vento do 8o. andar” me alerta: Ah, esse poeta tá de brincadeira comigo!

“Descobrindo Manoel” confirma a reverência que eu já tinha visto lá atrás: “para alguma coisa servem as minhas inutilidades.”

Não tem jeito para o meu jeito de ler. Eu leio numa busca obsessiva de referências, intertextualidades que anos de análise lacaniana me dizem que não são coincidências. “Não me procure nesse endereço, meu coração mudou-se. Pouco resta do antigo inquilino. A casa está vazia.”

Pausa para recomposição (...)

“Este poema pode me custar a vida.” Sim, poeta, vale a pena romper padrões, se for pra alcançar a infinitude de um poema. Obrigada pela impermanência da sua poesia nada provisória. É de paradoxos que se fazem poetas.

Íris Cavalcante, poeta

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

fragmento da memória



Do lado fronteiriço do pai
meu avô joão
com um canivete esculpia palitos para os dentes
com lascas do cercado trazidas do curral
onde o boi mugia no final da tarde
a tarde que intendia o alpendre
o alpendre que estendia meu olhar
o meu olhar que entendia meu avô
e os fiapos de madeira pelo chão
e as réstias da tarde pelo vão
e os palitos no colo do avô joão.
Entre o velho e o menino:
os palitos,
a tarde
e o coração.
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Fragmento do meu livro ©Trem da memória, um dos próximos lançamentos da Editora Radiadora.
Prefácio de Valdi Ferreira Lima
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desenho ilustrativo para esta postagem: ©Fausto Nilo

domingo, 10 de outubro de 2021

o olhar de Martine

 

foto Alan Mendonça

Nirton Venancio, a sua poesia provisória

Explorar as tardes, recomenda o poeta
mas o poema tem espírito de contradição
diz não ao ponto que enclausura
à maiúscula que atrofia
e sim ao que lhe convém,
silêncios e pontos quando pontes
o poema coa versos
tricota o tempo
eco enviesado do poeta transitório contraventor de setas
o poema se põe em pé
plumas entre veias e nervos
faz o ninho na retina
bica o corpo-semente
fura o crânio do poeta, barril de sonhos, pipas sem fios, desbussolados
o poema espera nas dobras da pele
do outro lado da rua
no lusco-fusco
ele é águas-claras na soleira da noite
o poema espia
desnuda
da sola dos passos ao crespo do cabelo
o poema faz o poeta
levanta veredas verticais
mastiga seu hálito.
É preciso reconstruir as nuvens
o poeta não cabe no tempo
de ruas, ofícios e calendários
ele anda entre as nuvens
e de cima
acalenta as rugas dos homens
olha o planeta pela luneta
e diz
vermelho-sangue
a poesia é urgente
ele sacode a poeira de galáxias
quer a mão quer o lábio
a virilha e o ombro
a solidão da gente
soltar o cheiro do silêncio
a carne do grito e a tarde que cai.
O poeta quer o futuro de seu coração sitiado
sabe que partir é se partir
partir é ficar no cais
mas o vento acaricia a pedra
a nuvem se move
e o poema passa levado pela correnteza
o poeta no seu encalço
ele fala de afeto e de volta, de temporais e amanheceres, de asas e de nó
leva seu coração entre as mãos
oferece
estranha eucaristia
um lençol de carne viva
seu corpo vaza outro
o infinito é aqui
o eterno é pra já
a pressa dos amantes estorva a marcha do tempo
os ponteiros caíram
na página em branco
inúteis.
- Martine Kunz
Em seu livro Cherrizinho, Armazem da Cultura, 2014, a escritora Martine Kunz, uma francesa-cearense desde 1979, faz um belíssimo relato sobre o olhar de seu coração no encontro com uma cidade, Fortaleza, que a esperava para acolhê-la de mares abertos, e o amor para sempre, o jornalista Claudio Pereira, que a aguardava para nele morar de braços abertos.
A narrativa é de uma beleza poética cativante. E tem a escrita de um roteiro cinematográfico digno de validação pelo mestre Jean-Claude Carrière, seu compatriota.
A certa altura do livro, na página 65, numa das tantas belezas de suas descrições, ela diz que "Não é a luz que torna visíveis as coisas, mas o olhar sobre elas." E aqui extraio esse todo verso no meio da prosa para agradecer o que ela escreveu na verticalização-mergulho de um poema sobre o meu livro Poesia provisória, Editora Radiadora, 2019.
Meu coração abraça o seu, Martine: a luz de seu olhar permanente sobre minha poesia provisória.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

quinta-feira, 22 de julho de 2021

o mapa do coração

Nos demais – eu sei,
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio, no peito.
Comigo, a anatomia ficou louca. 
                                                 
Como diz o título do ótimo artigo de Larissa Drigo Agostinho, mestra e doutora em literatura, publicado na Folha de São Paulo em 16 de agosto de 2019, “Maiakovski cantava o amor como quem escrevia a revolução.”
O texto analisa, por ocasião do relançamento de Sobre isto, pela Editora 34, o livro-poema que Vladimir Maiakovski escreveu em estado de dilaceramento do coração, recluso em seu pequeno apartamento em Moscou, entre os angustiantes meses de dezembro de 1922 a fevereiro do ano seguinte. Ele se separara de Lília Brack, seu grande amor, depois de uma grave discussão, quando se viu ferido justo na garganta pela flecha preta do ciúme, como diz Caetano em sua caudalosa canção. Tudo sempre esbarra embriagado de seu lume.
“Sem você eu paro de existir”, escreveu o poeta em uma carta à amada concordando com o pacto de silêncio e distanciamento entre ambos. E partiu para o exílio entre quatro paredes. Político e lírico ao mesmo tempo, Maiakovski entregou-se a esse livro na mesma proporção que se entregava a uma causa do mundo. Se odiava a mesmice da vida burguesa, a inércia e a imobilidade, como aponta Larissa Drigo em seu artigo, o poeta canta e desencanta o amor porque esse é também doído e corroído pela miséria de todos os dias. Morto em 1930, desfazendo-se em ato extremo, aos 36 anos, Maiakovski considerava o livro sobre isto de graça e sortilégios do amor sua melhor obra. "Quero viver até o fim o que me cabe!", preconizou em verso-lápide no poema.
Sobre isto inspirou Caetano Veloso a compor O amor, fragmento adaptado, gravado pela interpretação magnífica de Gal Gosta no disco Fantasia, 1981. Nos versos mais cortantes Maiakovski pede que “Ressuscita-me, / nem que seja só porque te esperava / como um poeta, / repelindo o absurdo quotidiano!”, ao que o baiano arrematou com um risco de esperança, “Ressuscita-me ainda que mais não seja / porque sou poeta / e ansiava o futuro”.
Entre o mundo lá fora e o quarto cá dentro, entre as causas de dores externas e os causos de horrores internos, entre os amores e tantos outros precipícios, entre o cubofuturismo russo e o barroco recôncavo de Santo Amaro, os poetas auscultam os corações dos poetas.
O trecho no início da postagem é do poema Adultos, que Maiakovski escreveu antes, publicado em Antologia poética por volta de 1922. Mas o mapa do coração é o mesmo, sempre. O mesmo domicílio no mesmo peito. A anatomia ficou louca, como mostra abaixo a reprodução de um postal português de 1904, com relevo em almofada, postado por um amante a bordo do navio Congo, para que a amada além-mar pudesse apalpar a geografia da saudade ao recebê-lo.
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Texto, com adaptações para esta postagem, inserido num capítulo do meu livro ©Crônicas do Olhar, Editora Radiadora.

sábado, 17 de julho de 2021

a voz de Billie


Hoje, 62 anos de morte da grande cantora Bille Holiday, respostagem do texto incluído num capítulo do meu livro ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela Editora Radiadora.

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A VOZ DE BILLIE
“Southern trees bear strange fruit / Blood on the leaves and blood at the root / Black bodies swinging in the southern breeze / Strange fruit hanging from the poplar trees...”
- Versos iniciais da canção Strange fruit que a cantora Billie Holiday cristalizou numa interpretação lancinante, extraída vagarosamente de cada recanto onde o coração arfava cada palavra. A letra é um dos hinos mais doídos sobre o racismo nos Estados Unidos, considerada a primeira canção de protesto, mais explicitamente sobre o linchamento de negros.
Numa tradução livre, tentando aqui alcançar a essência da composição, Billie fala das árvores do sul que produzem uma fruta estranha, penduradas nos álamos, que derramam sangue em suas folhas e nas raízes. A referência é direta, o sentido mais do que alegórico: o grafismo nítido dos corpos de negros enforcados, balançando na brisa do sul.
De autoria do judeu branco Abel Meeropol, poeta e professor num colégio no Bronx, foi apresentada a Billie em 1939, no Cafe Society, um bar no porão de um prédio em Greenwich Village. A cantora ouviu e na mesma noite cantou. O impacto foi tão grande que por meses seguintes Billie ia ao local somente para interpretar Strange fruit.
Sua presença magnetizante no pequeno palco silenciava a plateia. Até os garçons paravam, evitando qualquer barulho, numa preparação de ambientação sacra. As luzes diminuíam, um único facho no rosto da cantora. Aquele pequeno universo subterrâneo tornava-se um útero onde pulsavam o lamento e a revolta contra a violência racial. Em um momento da letra, Billie Holiday torcia a boca, desenhando a expressão de rosto esganado numa árvore. Cantava e saía discretamente como entrava, e ia embora ouvindo os aplausos da calçada.
Em 2012 foi lançado o livro Strange fruit - a biografia de uma canção, de David Margolick, onde relata toda a história da emblemática composição.
Daquela data até os anos 2000, quase 100 versões foram gravadas de Strange fruit, de Carmen McRae a Nina Simone, de Diana Ross a Cocteau Twins, de Blue Spirit Blues a Sting, de Wynton Marsalis Quintet a Tori Amos, mas nenhuma tem os componentes de indignação e resistência tão genuínos como a anímica e elegíaca interpretação de Billie Holiday. Como disse William Duffy, coautor da biografia Lady Sings the Blues, 1959, “Billie não canta músicas; ela as transforma".
O que caracteriza o estilo de Billie Holiday é justamente o âmago da execução de cada nota em sua voz. A medula da alma na expressão melódica. Sua conturbada vida parece desfolhar-se em cada faixa dos quase 50 discos gravados, em estúdio e ao vivo.
Quando Billie nasceu, seu pai, um tocador de banjo, tinha apenas quinze anos de idade e sua mãe não mais do que treze. Ele abandonou a família, a mãe sumia nas noites, deixava a filha bebê com parentes. Negra, pobre, desamparada, a garota amargou infortúnios logo cedo. Foi violentada aos dez anos de idade por um vizinho. Internou-se em casa de correção, lavou chão de prostíbulo, e virou prostituta aos catorze anos. Isso na Nova York dos anos 20.
Na década seguinte começou como cantora, quando foi descoberta por um pianista em um bar do Harlem. Sua voz conquistou nomes como Benny Goodman, Count Basie, Artie Shaw, Duke Ellington e Louis Armstrong. Fez concertos com todos eles.
Nos anos 40, Billie entrou numa de ruim para pior. Relações amorosas humilhantes, agredida em três casamentos, surtos de depressão por não poder engravidar, descontrole dos rendimentos em seus shows, enganada por sócios, ludibriada por empresários.
Internada no começo de 1959 com agravamento de cirrose hepática, insuficiência cardíaca e edema pulmonar, faleceu meses depois, no final da tarde de 17 de julho.
Tinha 44 anos, dez quilos a menos, e o olhar triste no teto do quarto.
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Foto ilustrativa para esta postagem: Dennis Stock, 1958.
©Steven Kasher Gallery

domingo, 11 de julho de 2021

poesia nos bastidores


O estender do mar é como o impossível:
o lado de cá
é
sempre
o infinito do lado de lá.

E entender de amar é como o impossível:
o meu lado de cá
é
sempre
o infinito do teu lado de lá.

Simetria, do meu livro Poesia provisória, Editora Radiadora, 2019.

Uma conversa hoje com o poeta Mauro Rocha, de Brasília, sobre os bastidores do meu fazer poético nas letras e no cinema.

domingo, 4 de julho de 2021

o doce bárbaro


"Panaméricas de Áfricas utópicas, túmulo do samba / mais possível novo quilombo de Zumbi”...

“Maurício Lucila Gildásio Ivonete Agrippino Gracinha Zezé / gente espelho da vida, doce mistério”...
Nesses dois versos, respectivamente das músicas Sampa e Gente, de Caetano Veloso, há homenagens explícitas ao escritor, dramaturgo e cineasta José Agrippino de Paula. Citado no segundo verso, é autor do livro PanAmérica no primeiro, publicado em 1967, que praticamente deu uma guinada diferente na literatura brasileira naquela década de mudanças pelo mundo todo. O livro de forte incidência pop, ou para ser mais preciso àqueles tempos, representativamente beat, narra as maluquices e casos amorosos de um cineasta enquanto tenta filmar nada menos nada mais do que A Bíblia Sagrada, colocando no elenco nomes como John Wayne, Marilyn Monroe, Burt Lancaster, Charles De Gaulle, entre outros, e eles próprios interferindo na construção das cenas. Viagem lisérgica total, situemos assim. Ou não. No mínimo, o suprassumo da estética tropicalista. Aliás, sua influência sobre o movimento cultural é inegável; Jorge Mautner lembra que "quando ele falava, todos silenciavam".
Essa mistura desvairada em sua criação, com personagens reais da cultura norte-americana, é, na verdade, uma crítica muito bem armada sobre a sociedade de consumo. Caetano Veloso dizia que o livro parecia a Ilíada, do poeta grego Homero, narrada por Max Cavalera, ex-vocalista do Sepultura. É uma boa semelhança entre coisas diferentes. O fato é que Agrippino soube como pouquíssimos captar – e viver na pele – o século XX no que ele teve de mais representativo no ser humano e seus signos.
PanAmérica foi reeditado em 2001, pela Papagaio Editora, que relançou em 2005 o primeiro livro de Agrippino, Lugar público, originalmente publicado em 1965. Houve uma proposta da editora, mas não concretizada, de reunir toda a obra literária desse mito underground, que compreende contos, ensaios, peças de teatro, roteiro de shows musicais, romances inéditos e textos dispersos.
Agrippino foi diretor do muito comentado e pouco visto Hitler Terceiro Mundo, seu único longa-metragem, de 1968, um dos mais radicais do cinema alternativo que já vi. Gosta-se ou não do filme ou do gênero, mas não dá para ficar indiferente a um trabalho que marcou época e influenciou outros diretores. O não menos original Carlos Reichenbach dizia que suas obras, "deflagraram uma revolução mental e sensível na minha geração". Os curtas rodados em Super-8 já traziam a linguagem inovadora de um artista inquieto e visionário.
Em 1976 Gilberto Gil musicou alguns trechos do livro PanAmérica e inseriu na canção Eu e ela estávamos ali encostados na parede, gravada no antológico Doces Bárbaros – Ao Vivo.
Agrippino vivia em seu exílio em Embu das Artes, na Grande São Paulo, desde o começo dos anos 80, esquecido do mundo, que tanto observou. Desde então teve uma vida difícil, principalmente depois da morte de sua filha, batizada Manhã, em acidente de carro em 1992, que teve com a bailarina e coreógrafa Maria Esther Stockler, de quem estava há muito tempo separado, mas nunca a esqueceu, “Maria Esther está lá na avenida Angélica falando com Caetano. Ela gosta de sair”, delirava.

quarta-feira, 30 de junho de 2021

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Ícaro


Dimas Macedo é um dos maiores poetas cearenses da minha geração. Seu trato fino de ourives nos versos e seu olhar rigoroso quando analisa poesia e prosa em textos magníficos, dão-me não meramente um convencimento, mas a consciência de que o meu fôlego nos meus escritos expressam "exatamente / aquilo que não permito / que me empreendam: / o recolhimento do meu voo, a desfaçatez de dizerem / que o Ícaro em que acredito / não pode / seguir / viagem", como fecho na quarta capa de Poesia provisória, lançado em 2019 pela Editora Radiadora.

Grato por voar comigo, caro amigo poeta!

quarta-feira, 9 de junho de 2021

poesia na Radiadora


Clube Radiadora de Leitura

Editora Radiadora
live-convite
hoje, 9 de junho, 20h
@editora_radiadora - Instagram
livro Poesia provisória, 2019
mediação: Alan Mendonça, poeta, editor

terça-feira, 8 de junho de 2021

sexta-feira, 4 de junho de 2021

a viagem de volta


No final da manhã de 4 de junho de 1939, o navio alemão MS St. Louis com 937 refugiados judeus alemães aproximava-se do porto em Florida, Estados Unidos. A embarcação, sob o comando do capitão Gustav Schröder, partira de Hamburgo no dia 13 de maio com destino a Havana, Cuba, onde faria escala, pois os passageiros estavam em lista de espera oficial para a obtenção dos vistos de entrada em terras norte-americanas. Os refugiados sequer desceram. O governo de Federico Laredo Brú, do Partido União Nacional, mudou de ideia na última hora e ordenou que partissem.

Na costa da Florida, o St. Louis foi recebido com tiros, disparados como advertência para voltarem. O presidente Franklin D. Roosevelt, do Partido Democrata, impediu, argumentando que os passageiros não podiam desembarcar com vistos de turistas, pois não tinham endereço de retorno. A Lei de Imigração de 1924 restringia o número de imigrantes do leste e sul da Europa. Ou seja, não previa a entrada de refugiados. Ou seja mais ainda, a burocracia draconiana acima de decisões humanitárias. O capitão Schröder tentou convencer o primeiro-ministro canadense, já que estavam a apenas dois dias daquele país, mas foi igualmente hostil com os exilados. E na lista de passageiros, nomes das mais variadas classes sociais, famílias pobres, comerciantes, advogados, professores, e até uma condessa, Denise Kreisler. Há relatos de um militar desertor do exército nazista nos porões. Todos fugindo das garras de Hitler.
Seguindo de volta à Europa, o St. Louis tomou rumo incerto à procura de países que pudessem aceitar os refugiados. Depois de muita negociação por quinze dias, com grandes dificuldades de comunicação por rádios transmissores nas águas agitadas do Atlântico, o navio aportou na Bélgica, Reino Unido, Países Baixos e França, distribuindo os passageiros. No decorrer da Guerra e invasões das tropas nazistas em alguns desses países, 227 dos refugiados foram presos e assassinados nos campos de concentração de Auschwitz e Sobibor, no que Hitler se vangloriava como “solução final” para a pureza da raça ariana. Os que conseguiram escapar serviram de testemunhas, relatando nas décadas seguintes as expectativas dentro do navio e os dias de insegurança pela sobrevivência escondendo-se dos algozes.
Em 1974 o jornalista Gordon Thomas e o produtor de televisão Max Morgan-Witts, ingleses, publicaram Voyage of the damned, depois de longas pesquisas sobre o fato, possivelmente o livro que mais aprofunda o que aconteceu naquela viagem do St. Louis, e os desdobramentos trágicos na volta ao continente europeu. Há outro, que ainda não li, The saddest ship sfloat": The tragedy of the MS St. Louis, da jornalista canadense Allison Lawlor, lançado em 2016.
A publicação de Thomas e Morgan-Witts serviu de base para o roteiro de A viagem dos condenados (Voyage of the damned), produção britânica de 1976, dirigida pelo norte-americano Stuart Rosemberg, com elenco de peso, Max Von Sydow, Faye Dunaway, Orson Welles, James Mason, Oskar Werner, Malcolm McDowell, Ben Gazzara , Fernando Rey, José Ferrer.
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O texto faz parte do meu livro ©Crônicas do Olhar, Editora Radiadora.
Na foto ilustrativa para esta postagem, do acervo da SZ Photo, Munique, o momento da chegada do St. Louis em Antuérpia, Bélgica, 21 de junho de 1939.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

gente é pra viver


Vacina já para todos!

Fora verme!

quarta-feira, 12 de maio de 2021

"...e amores que estendem os braços..." *

 

* digo no poema Ventania, publicado no meu primeiro livro Roteiro dos pássaros, Editora Lourenço Filho, 1981.

Musicado por Ricardo Augusto, foi gravado por Mona Gadelha no disco Cidade blues rock nas ruas, Brazilbizz Music, 2013.
Com arranjos de Alexandre Fontanetti, a belíssima interpretação de Mona abre o programa Mulheres da América, produzido e apresentado por Eliana Guedes, sempre às segundas-feiras pela web Rádio Elétrica, de Porto Alegre. O trabalho do programa de rádio é um dos melhores e substanciais projetos musicais desse universo virtual de imagens e sons que vivemos de informação, arte e necessário deleite para não sucumbirmos ao caos. No ar há três anos, Eliana a cada edição apresenta compositoras e cantoras de todas as Américas, de todos os tempos, gêneros e desejos. A pauta é conduzida por um tema específico, enriquecida pelos textos que ela desenvolve, através de sua voz tão límpida, tão na essência de cada sílaba pronunciada.
Desde ano passado tenho participado da produção do programa, escrevendo textos, como foi para as edições sobre o centenário de nascimento de Eliseth Cardoso, e recentemente sobre os 30 anos da morte de Gonzaguinha.
No programa que foi ao ar segunda-feira e está desde ontem no Spotify, Eliana escolheu dez poemas do meu terceiro livro, Poesia provisória, Editora Radiadora, 2019. A cada preciosíssima leitura sua, escolhi canções nas vozes de Margo Timmins, Edith Piaf, Téti Rogério, Maria Bethânia, Giana Viscardi, Emilie-Claire Barlow, Rita Benneditto, Núbia Lafayete, Mercedes Rosa. Há uma unidade de pulsação na elaboração de Eliana: os poemas, seu dizer os poemas, as letras das músicas, as vozes femininas. Amores que estendem os braços.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

canções permanentes para uma poesia provisória


Eliana Guedes, produtora e apresentadora do programa musical Mulheres da América, de Porto Alegre, RS, pela web Radio Elétrica, selecionou dez poemas do meu livro Poesia Provisória, Editora Radiadora, 2019.

Lido cada poema, uma canção nas vozes de Mona Gadelha, Edith Piaf, Téti Rogério, Maria Bethânia, Margo Timmins, Giana Viscardi, Rita Benneditto, Núbia Lafayete, Mercedes Rosa.
A apresentação será hoje às 20h, www.radioeletrica.com

sexta-feira, 7 de maio de 2021

na casa de Aurélia

 


"No Lugar ArteVistas no Youtube. Hoje. 19h. Live da Casa D'Aurélia.

Nosso encontro hoje é com Nirton Venâncio. Antes de tudo poeta, aí sim o cineasta se manifesta com todo o espírito memorialista e o zelo afetivo que lhe acompanha desde sempre, desde muito menino quando observava as mulheres da sua família, suas ancestrais, do canto da casa em Crateús, sua cidade natal, e que foi dar em 'Cotidiano Perdido no Tempo', com a participação da nossa saudosa Antonieta Noronha e voz de Henriqueta Brieba, também saudosa. Vendo seus filmes, lendo seus escritos, em poemas ou não, a delicadeza do olhar se faz presente, seja na direção dos seus ou quando se detém sobre a obra alheia. Não será diferente, certamente, quando nos encontrarmos com o documentário Pessoal do Ceará, ao qual se dedica há anos, sobre o movimento artístico que tanto marcou nossa história, e que aguarda brechas na pandemia e no pandemônio que nos ataca para poder finalizar.

Tive passagem breve num set dirigido por Nirton Venancio sobre o lixo no aterro sanitário no Jangurussu. Uma das minhas primeiras experiências em cinema. Foi inesquecível. Me marcou seu modo de articular e dirigir situação tão complexa com gentileza e maestria. Pena que não temos registro desse trabalho, que foi uma encomenda para uma entidade inglesa.

No mais, a ressonância da voz de seu filho mais recente, Poesia Provisória, se torna mais audível ainda através de outras, como a voz de Rubi e a de Mona Gadelha, entre outros artistas. Um prazer esse encontro com Nirton!"
- Marta Aurélia, atriz, cantora, jornalista

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

boletim de um tempo


Nasci em crateús, sertão dos inhamus, ceará, numa manhã de fevereiro, dia 15, uma terça-feira, uma semana antes do último dia carnaval. A lua estava minguante. Enquanto eu crescia rumo à lua nova, me esquivava da folia que chegava no peito de minha mãe que me guardava.

Aprendi as letras e os números com madrinha francisca e nunca apanhei de sua palmatória pendurada na parede.
Cresci entre fiapos de pano das máquinas de costura de minha avó e tias-avós, que fizeram minhas primeiras roupas para usar nos retratos e na praça da matriz.
Fui para Fortaleza aos dez anos de idade. Morei numa casinha de três vãos no final do bairro Nossa Senhora das Graças e começo do Pirambu. Meu pai era operário da Fábrica São Judas Tadeu e defendia as reformas base de Jango. Estudei no Monsenhor Hélio Campos, no Sales Campos, no Liceu, no João Pontes, e Letras na Universidade Estadual do Ceará.
Escrevi nos muros, nos cadernos Avante, em papel almaço, na palma da mão. Escrevi cartas, me escondi nos diários, me expus nos cadernos literários dos jornais, em páginas de revistas. Publiquei livros de poesia, ganhei prêmios, perdi outros. Sou professor de Literatura e aprendo com quem me escuta.
Aprendi cinema nos sets. Escrevi roteiros e continuo. Dirigi filmes e sou reincidente, ganhei prêmios, perdi tantos. Sou professor de cinema e aprendo com quem me assiste. Não seria cineasta se não fosse antes poeta.
É só. É tudo. Tenho a idade que aparento.
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Dados biográficos no meu livro-poema Trem da memória, dedicado à casa onde nasci, em que narro minha infância do interior (onde rabisco os nomes próprios em letras minúsculas, porque sou menino) aos primeiros anos na capital (onde escrevo com maiúsculas porque acho que sou adulto).
Com lançamento presencial adiado, pela
Editora Radiadora
, desde março do ano pandêmico de 2020, a previsão será não sei quando for possível a aglomeração dos afetos.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

leitor Afonso Celso Machado


 Poesia provisória, Editora Radiadora, 2019


sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

todas as metades

Meu primeiro poema musicado foi Ventania, do livro Roteiro dos pássaros, Editora Lourenço Filho, 1981, por Ricardo Augusto.

Não sou um letrista para canções. Sou apenas um poeta aprendiz e escrevo poemas para “dar coerência aos sonhos”, como disse Pirandello. A poesia tem sua musicalidade. Mas quando um poema, já com seu corpo definido, ganha uma melodia, ele se engrandece, ganha uma alma, uma outra dimensão. O poema se duplica. E se triplica na audição do outro.
A melodia está lá, na extensão de cada verso, no fôlego de cada palavra, na rima de uma emoção. O poeta não se dá conta. A escrita é uma canção embutida. Vem o músico e encontra as notas, porque só a ele cabe o sol que ilumina dó-ré-mi-fá-lá-si.

Depois de Ricardo Augusto, outros compositores cearenses desenharam música em alguns poemas, Bernardo Neto,
Calé Alencar
,
Parahyba de Medeiros
,
Alan Morais
,
Zé Rodrigues
,
Charles Wellington
,
Gildomar Marinho
,
Evaristo Filho Freitas
,
Eugênio Leandro
, o carioca Berto Mendes e o goiano-brasiliense
Rubi
. É sempre uma saudável perplexidade o encontro com a outra margem do rio.
Recentemente Alan Morais e Zé Rodrigues postaram no Spotify os EPs com as parcerias, respectivamente, Lunar e Metade, publicados no meu livro Poesia provisória,
Editora Radiadora
, 2019. No mesmo serviço de streaming está Ventania, gravada por
Mona Gadelha
no disco Cidade blues rock nas ruas, Brazilbizz, 2013, e também no DVD do show apresentado na Caixa Cultural de Fortaleza, 2014.
Abaixo, os links de cada uma. Grato a todos os parceiros pelas metades que somamos.