sábado, 26 de dezembro de 2009

linhagem


foto Kiriko Shirobayashi

Nossos filhos
dormem no quarto ao lado.
O amor assim me convence
que ele se estende
nos sonhos que não nos pertencem.

(do livro "Raios")

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

linha

foto Thad Selling

Essa linha que nos separa
no meio da sala
é a mesma que estranhamente
nos enlaça
e assim como nos ameaça
nos joga no mesmo abraço.



Se você parte por um século
ou por segundos me ausento,
fica sempre do outro um pedaço
na viagem solitária
de quem segue em desalento.

(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 6 de dezembro de 2009

indefinido

foto Lukas Fiorki


Faço poemas enquanto estou errado.
Enquanto sou imperfeito.
Porque nada entendo.


Faço poemas para a vida inteira.


(do livro “Raios”)

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

toda


 foto Pietro Adelchi
 
Volta 
e
meia
a
lua
volta
inteira.

(do livro "Poesia provisória")

domingo, 8 de novembro de 2009

exílio


foto Lukas Stevenson
   
Escrevo-te distante.
Não meu corpo tão longe do mar:
distante do oceano.


Vivo por enquanto a quilômetros de mim.
O que restou aos teus olhos
é o que mantém a lembrança
de um pouco que me definia.


Vago a olhar-me para trás
e de lá tento me alcançar de volta.


Não me perguntes o que houve.
Tão logo um lado e outro se reencontrem
passarei por tua casa.


(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

o morto


Gil Vicente, nanquim sobre papel

O morto
tomou destino ignorado:

em que planície nos céus
sibila o seu silêncio?

Com sua armadura desfeita
o que resta é inútil:
não suporta o vento
(que sopra com a chuva)
não será restaurado nos museus
(que espiam a história)
nem se moverá com as lembranças
(que amontoam os retratos).

O morto
tomou destino ignorado.

II
Não tenham medo:
o morto não se levantará
de sua solene posição

deitado como nunca
com seu nariz e seu sapato
             em
              riste. 

III
O morto
      (saibam)
não segue no cortejo:
      segue um morto
      (peso inútil)
      que o limite do nosso olho vê.

IV
O morto independe da vontade
dos que lhe jogam areia e flores
dos que lhe dizem orações e calam
dos que choram e esquecem
-          o morto
                  agora
                            é eterno.

V
Lembramos o tamanho do morto
com suas roupas
com sua voz
com sua dor
e choramos o tamanho que falta
                      a lágrima que salta
                      em nós
até quando aprendermos
a não ser somente vivos.
  
VI
De nada mais sabemos
até que o morto nos mande notícias
e que seu vulto passe ao longe
como passam os viajantes
                               (depois)
                               do entardecer.

VII
Maior é o morto
       na viagem
que ele continua
  
(em que planície nos céus?).


(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

regime



foto Manuel Sardinha 

Tenho seus beijos
como medida.
Não ponha açúcar no café.

De doce basta a vida.

(do livro "Raios")

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

viés


foto Carlos Vilela

O poeta percebe 
de forma
estranha.
Por isso percebe. 

(do livro "Poesia provisória")

domingo, 4 de outubro de 2009

lençol


 foto Pedro Miguel Costa

  Cubro
o teu corpo nu
com
o meu corpo nu.

(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

sábado, 26 de setembro de 2009

seguro que fue por su boca



Minha amada, minha doce cara metade, estou seguro que foi por sua boca. Encontrei sua roupa junto a minha, seu corpo junto ao meu. Seus dias juntos aos meus. Feliz aniversário!

No se si fue por los vino,
no se si fue por su boca
pero entre tanto tango encontré
su ropa, junto a mi ropa.


No se si fue por Castillo,
Pugliese, Troilo o Darienzo
pero su abrazo en mis manos
era un pincel y la pista un lienzo


Hay los vino, seguro que fueron los vino
(Yo no fuí)


Seguro que fueron…los vino.
No se si fue por los vino,
no se si fue por su aliento
pero entre tanda y tanda encontré
su ombligo, junto a mi cuerpo.


Y así volando en la gloria
Y aterrizando en la ruina
yo fui cayendo y cayendo
en la red de esas medias…asesinas


Hay los vino, seguro que fueron los vino
(Yo no fuí)
Seguro que fueron…los vino.


(Los Vino', composição de M. Di Genova, com Otros Aires)

terça-feira, 8 de setembro de 2009

longe

 foto Larry Wiese
  
em algum lugar
o mar existe
para algum porto
ser avistado.
(do livro "A paisagem e a distância")

terça-feira, 1 de setembro de 2009

suspense

foto Jean-Sebastien Monzani 
  
Que viagem é essa
(que fazemos)
durante dias
noites
e  eclipses
dentro de um corpo
 (vagarosamente)
para frente
    (que não vemos)?
Existirão braços abertos
  ou abismos estendidos
no final de nossos olhos?
Haverá festa
 luzes
bandeiras
gente na estação?
Haverá (depois)
tranquilidade
planície
 sonho
 ou
solidão?
      (do livro “Poesia provisória”)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

aceno

foto David Santies

das entranhas
das terras
do solo materno
do chão do meu pai
me arrebentei numa cidade
com porta e janela
para o mar
onde meus olhos miravam outro continente
como uma lembrança...

(do livro “A paisagem e a distância”)

quarta-feira, 22 de julho de 2009

navegante

foto Shepper Dann


Eu que sempre navego
ao sul do teu corpo
é no sal de tua pele
que conservo meus segredos
e espalho os meus beijos.


(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 13 de julho de 2009

matutino

foto N.Meilner

Os poetas dormem tarde.
A poesia é que acorda cedo.

(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 1 de julho de 2009

desdém

foto Paul Laswel

Pouco me importam suas ameaças.

Sei que um dia
com a noite vou me embora.
Não sei a que custo
com que fala
talvez de vício.

Por enquanto
durmo agarrado aos meus amores.

(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 16 de junho de 2009

reverso

foto Lukas Linberkley

Já que entre nós
todo o contrário é crível

não desfaça cerimônia:
volte o mais rápido impossível.

(do livro "Poesia provisória")

quinta-feira, 4 de junho de 2009

abstrato

foto Rosalina Afonso

No tempo tudo cabe
tudo muda de lugar
tudo some
não ficam parados no espaço
o gosto das frutas
e o cheiro dos homens.
O tempo dispensa a vontade alheia
impõe-se sobre a selva e a cidade
e destas nascem as folhas e os filhos
que o próprio tempo amadurece e faz saudade.
O tempo – enorme! – eleva os deuses
arrasta os homens
e espalha o mistério de uns
sobre a solidão dos outros.
De muito longe o tempo caminha
não como um velho
tão pouco uma criança:
unicamente caminha
- e sugere a esperança
e adormece as rugas.
O tempo não é o mesmo
sobre os aviões e os pássaros:
nas asas de um
é tudo muito rápido
nas asas do outro
é tudo muito livre.
(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 19 de maio de 2009

cinzel

foto Carlos Vilela

Viver:
esculpir
o
tempo.


(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 12 de maio de 2009

Cântico Negro



Amanheci com "Cântico Negro" na cabeça, um dos mais belos poemas de todos os tempos, escrito pelo português José Régio, em 1925.

Na década de 70, Walmor Chagas fez um espetáculo, "Os portugueses", onde interpreta vários poetas, de Camões à Antônio Botto, passando por Fernando Pessoa, Cesário Verde, Mário Sá-Carneiro, e entre outros igualmente importantes, José Régio. Foi a melhor interpretação de "Cântico Negro" que já vi-ouvi-vivi. Mas não encontrei registro dessa apresentação.

A interpretação de Maria Bethânia, de 1982, é também comovente, tão bela quanto o poema.

sábado, 2 de maio de 2009

parecer

foto Marília Campos

Pode ler
pode guardar
pode rasgar.

Tenho versos para todos os desgostos.

(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 26 de abril de 2009

desalinho


foto Carlos Vilela

Quando se descuida a alma
sou o corpo
em procura.

As mãos se aquietam
com qualquer desculpa.
É preciso ficar atento.
Todo cuidado é corpo.

(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

quarta-feira, 15 de abril de 2009

rascunho



Kate, do blog Retrô, deu a idéia a Di, do blog A Fox Lady, de publicar uns manuscritos em suas páginas pra ver como são os garranchos de cada um. E eu seguindo as meninas.

Estão aí os meus reversos.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

recorte

foto N. Bolm

Jogado no mundo
não há como se escapar:
todo passo
é decisivo,
todo caminho
dá para o norte,
todo corpo
é um gibão sobre a alma,
toda a vida
é o lado externo da morte,
todo peito
é um roçado
para toda safra
ser das rosas.

(um trecho de "Galope", do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

domingo, 29 de março de 2009

a página em branco


Escrevo, sem pensar, tudo o que meu inconsciente grita. Penso depois: não só para corrigir, mas para justificar o que escrevi."
(Mário de Andrade)

É por isso, meus caros meia dúzia de leitores, que demoro muito a colocar os poemas nesta mal traçada página. Poema não é pipoca nem caldo de cana, que rapidinho se produz.

domingo, 15 de março de 2009

minh'avó


foto Henri Cartier-Bresson

Minh’avó caminhava pela grande casa.
Minh’avó muito pequena, até um dia desses,
caminhava pela grande casa.
Continuava com seus passos
seu cansaço
seus laços.


Minh’avó alterou a lei da física:
carregava no seu espinhaço tão frágil
décadas décadas décadas
datas datas datas
dias dias dias
carregava festas
aniversários
e algumas compras
carregava guerras
revoluções
e algumas brigas.

Teimosa, não se dava conta de toda essa carga
e olhava pela janela
o automóvel na rua
a moça na calçada
e ninguém mais em direção à igreja.


(do livro “Trem da memória”)

quinta-feira, 5 de março de 2009

apartado

foto Jean-Sebastien Monzani

A distância nos dá medo
quando as coisas estão paradas.

É por você estar longe
e não ter previsão alguma do tempo
que o presente continua sobre a mesa.

O mundo parece inútil
nesse pedaço em que não posso tocá-la.
Deve ser impressão desfocada dos olhos
ou sua ausência é uma eternidade em mim e na sala.

Há um telefone, uma porta e meus passos contidos.
Para cada lado o espaço para se medir.
O coração achará em algum canto as chaves e os motivos
para lhe encontrar na volta em vez de partir.

O medo nos distancia
das coisas em movimento.

(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

promessa

foto Mona Kuhn

Ela disse
que me amaria para o resto da vida.
Ela me disse.

Como a vida é curta.

(do livro “Raios”)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

vice-versa

foto Patrick Talbert

Sou
comprido
e sem solução:
entre
os dois pólos
caminho teimoso
do norte ao sul
dos pés à cabeça
passando pelo mistério do coração
sou astronauta
e uso gibão
cavalgo curioso
da via-láctea ao sertão
e vice-versos
na minha
solidão.

(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

armadura

foto Mário Cravo Neto

Meu corpo é a única coisa que tenho
que é nada
e como suicida
luto contra moinhos, tempestades e solidão
que é tudo.


Escondo-me nesta armadura de ossos,
carne
e vestimentas
e espio a vastidão do mundo pelos buracos dos olhos
como quem espia lugares estranhos
infinitos
perigosos.

Meu corpo é a única coisa que tenho
para carregar o pretexto da alma.
É magro, feio e escandaloso
o corpo
mas é única coisa que tenho
para caminhar pelo tempo e pelos sertões.

Garantia não tenho
se o meu corpo é forte e frágil ao mesmo instante
se sujeito-me ao abismo
ao chão
à poeira
se estou marcado para me tornar saudade
lembrança
e fotografias
e minha história não terá mais
um cavalo para montar
e serei uma estátua invisível no espaço.


Garantia não tenho
de nada
nada
não levarei escondido no bolso
nenhuma semente
nenhum suspiro
nenhum gesto
pois tudo é podre
condenável
consumível.

Só é garantido o mais difícil:
a miragem na imensidão
o que se supõe ao longe
o completo mistério
para se chegar até lá
não se sabe com que corpo
não se sabe com que asas
não se sabe.

(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

um recorte

foto Bruce Taj

O tempo não é o mesmo
sobre os aviões e os pássaros:
nas asas de um
é tudo muito rápido
nas asas do outro
é tudo muito livre.


(do poema “Abstrato”, livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

regime

foto Manuel Sardinha

Tenho seus beijos
como medida.
Não ponha açúcar no café.

De doce basta a vida.

(do livro “Raios”)