sexta-feira, 28 de abril de 2006

aguardo

foto Lars Ihring

Quando você voltar
estarei com braços
abertos
o coração
exposto
os olhos
sorrindo.

Os meus beijos
secarão suas lágrimas
o meu corpo
aplacará sua febre
e nossas noites
iluminarão os dias.

O que é saudade
será sempre a festa de volta.

(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 22 de abril de 2006

cofre

foto Steve Casimiro

Quando quiseres
venhas
e gires com as pontas dos dedos
o meu coração.

Encontrarás
teus segredos nos meus olhos abertos.

Guardo no peito
o íntimo
de quem se achega.



(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 19 de abril de 2006

domicílio

foto Michael Kenna

Não me procure nesse endereço:
meu coração mudou-se.
Pouco resta do antigo inquilino.

A casa está vazia.

(do livro “Raios”)

terça-feira, 18 de abril de 2006

armadura

foto Mário Cravo Neto

Meu corpo é a única coisa que tenho
que é nada
e como suicida
luto contra moinhos, tempestades e solidão
que é tudo.

Escondo-me nesta armadura de ossos, carne
e vestimentas
e espio a vastidão do mundo pelos buracos dos olhos
como quem espia lugares estranhos
infinitos
perigosos.

Meu corpo é a única coisa que tenho
para carregar o pretexto da alma.
É magro, feio e escandaloso
o corpo
mas é única coisa que tenho
para caminhar pelo tempo e pelos sertões.

Garantia não tenho
se o meu corpo é forte e frágil ao mesmo instante
se sujeito-me ao abismo
ao chão
à poeira
se estou marcado para me tornar saudade
lembrança
e fotografias
e me história não terá mais
um cavalo para montar
e serei uma estátua invisível no espaço.

Garantia não tenho de nada
nada
não levarei escondido no bolso
nenhuma semente
nenhum suspiro
nenhum gesto
pois tudo é podre
condenável
consumível.
Só é garantido o mais difícil:
a miragem na imensidão
o que se supõe ao longe
o completo mistério
para se chegar até lá
não se sabe com que corpo
não se sabe com que asas
não se sabe.

(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 17 de abril de 2006

medida

foto Jean-Sebastian Monzani

Caberão no poema
quando
soltos,
os beijos
quando
largos,
os abraços
quando
estradas,
os passos
?



(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 12 de abril de 2006

metade

foto Paul Hendicack

O que se vê em mim
não é o todo:
escondo gestos.
O que se sabe de mim
(ainda) não é tudo:
escondo datas
Metade que nem eu mesmo sei
mais corrói do que vive e cresce:
e silenciosamente é uma doença
(e não me esquece).

Convivo como caça e caçador
dentro de mim:
uma hora me acho
a outra não me aceita
e sou metade do rosto desenhada
a outra metade desfeita.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 11 de abril de 2006

lençol

foto Dominique Lefort

Cubro
o teu corpo nu
com
o meu corpo nu.

(do livro "Roteiro dos pássaros - Remixado")

sexta-feira, 7 de abril de 2006

asas

foto Bruce Taj

Tirem-me a roupa
o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
que criei pra mim

tirem-me o domingo
a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
que criei pra mim

tirem-me os lábios
o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
que criei pra mim

(do livro “Poesia provisória")

quarta-feira, 5 de abril de 2006

parecer

foto Marília Campos

Pode ler
pode guardar
pode rasgar.

Tenho versos para todos os desgostos.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 4 de abril de 2006

anônimo

foto Nicholas Davies

Eu nunca deixo pistas dos meus pecados.
Escondo meus delitos
e deixo a condenação para a volta.
Estou muito apressado.

Eu nunca deixo atalho
para me descobrirem:
prefiro o próximo encontro
com o que encontrar próximo aos meus olhos.

Eu nunca deixo traços dos meus planos.
Deixo o resultado de tantos enganos
como pudesse ser também seu
aquilo que foi somente meu.

Não passo procuração para sentimentos
enquanto viajo para lugar desconhecido.

Este poema pode me custar a vida.
Pode me custar os amigos.
E me gostarem os inimigos.

Mas não deixarei rascunho dos meus reversos.

(do livro “Poesia provisória”)