sexta-feira, 30 de junho de 2006

desmontando as tardes

foto Mario De Biase

Eu podia ver o circo da janela do terceiro andar. Ali defronte, no terreno por onde os cachorros circulavam. Nunca desci nas tardes de sábado e manhãs de domingo para assistir a uma das sessões anunciadas no serviço de som que arranhava os ouvidos. Não porque era um circo pequeno: o que eu gostava mesmo era ver o circo da janela do terceiro andar.
Um dia começaram a desmontar o circo. Foi quando me lembrei que dias antes anunciaram a última semana com atrações imperdíveis. Desmontavam o circo e desfaziam-se também minhas chances de assistir alguma apresentação se eu mudasse de idéia e descesse as escadas rumo à bilheteria. Da janela acompanhei por quase o dia todo o circo se resumindo a uns poucos caminhões velhos amontoados de tábuas, lonas, grades... e pessoas sonâmbulas sob o sol de segunda-feira.
Minhas tardes passaram a ser mais solitárias no retângulo da janela: não me importava o espetáculo, o que depois aconteceria à noite no picadeiro: o que me segurava os olhos era a vida ao redor da lona suspensa. Eram os artistas sem suas roupas de artistas, as pessoas comuns vivendo na temporalidade dos trailers, no improviso dos lares. Eram os animais tornados comuns na pouca extensão das jaulas. O melhor era aquele espetáculo, que me extasiava e incomodava, visto do meu camarote especial da janela do terceiro andar, tão longe e tão perto.
O circo foi embora e o melhor poderia ter sido mesmo partir: viajar sem ter um passado nos álbuns, ou um futuro agendado. Viajar tendo sempre só o presente que dura algumas semanas, poucas vezes uns meses, nunca muitos anos. Viajar na busca eterna do presente.
As estacas não criam raízes no chão da cidade.

(do livro "Outras prosas")

terça-feira, 27 de junho de 2006

abolerado

foto Leoni Oostvogel

Vagueio dentro do quarto
enquanto meu
coração
passeia longe de mim
e me reparto
entre
o começo e o fim
desta noite em que espero
notícias do dia
no alvorecer que teus olhos dirão
outro grito
outra emoção
que não seja este bolero
em que meu corpo se com
passa
vaguei
ando comigo dentro do quarto
en
quanto meu coração ultra
passa
fronteiras de luzes e portas
para chegar bempertopertode ti.


(do livro “Poesia provisória")

segunda-feira, 19 de junho de 2006

simetria

foto David Fokos


O estender do mar é como o impossível:
o lado de cá
é
sempre
o infinito do lado de lá.

E entender de amar é como o impossível:
o meu lado de cá
é
sempre
o infinito do teu lado de lá.



(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 10 de junho de 2006

presença

foto Cig Harvey


Vivo em ti
todos os momentos de mim.


(do livro “Poesia provisória”)