sábado, 27 de maio de 2023

apenas uma parte do Trem da Memória


Partir voluntariamente é doce: o exílio ė amargo e uma chaga que não fecha nunca. O cearense Nirton Venancio é um exilado que já viveu 3/4 de sua vida e essa ferida não sara.
A vida, o estudo e a arte - apesar do trauma do exílio - foram formando Nirton um cidadão, um gentleman, um humanista, um ser humilde, um ente sensível, acima de tudo. Como poeta, é um brunidor: trabalha os poemas até fazer brilhar o coração das palavras.
Para sorte minha, Nirton, aqui e acolá, à surdina, me enviava pedaços dos originais de Trem da memória (Editora Radiadora, 2022), que vinha escrevendo há 30 anos. Aqueles textos me deixavam encantado. E para maior felicidade minha, convidou-me para o prefácio. Assim o fiz, como lá está.
Para quem ainda não viu o livro, nem teve o prazer sensitivo de cheirar suas folhas, vou aqui dar um spoiler, em prosa, do que Nirton escreveu maravilhosamente em 76 páginas inteiriças e em belíssima poesia.
A história é assim: o pai de poeta, um bodegueiro conceituado de Crateús, interior do Ceará, ativista político, que fazia reuniões clandestinas contra a Ditadura Militar de 1964, perseguido pelo Golpe, tem de deixar sua cidade às pressas para se esconder no formigueiro humano de Fortaleza.
Por conta disso, o menino Nirton e sua irmã pequena tiveram que ficar sob os cuidados da avó e tias-avós. Até que numa madrugada fria foram acordados às pressas por uma delas para irem à estação onde o trem esperava. Iriam juntar-se a seus pais na capital, de onde só sabia do mar por ouvir dizer, por imaginar.
Poucos anos depois, Nirton retorna à Crateús em busca do passado que não encontra nas interrogações que faz: “peço água e pergunto se sabe de mim / o neto da costureira, o filho do bodegueiro.”. Só a indiferença responde.
Ninguém se interessava pelo passado de um menino que brincara em frente ao casarão avoengo (“Tudo foi tão de repente / diante dos meus olhos / que não houve tempo / para retornar ao corpo do menino / que brincava na calçada”); que comera com sua irmã Bibia as hóstias fabricadas numa casa para serem consagradas na Igreja Matriz (“O rei dos reis nu em nosso estômago / e os farelos pelo chão / sem patena / sem novena”); não sabiam do menino que não perdia uma sessão de domingo do cine Poty (“como disseram que caminhava assim / o meu bisavô / de bengala e chapéu para a tela muda”) e que levava para trocar as revistas de bang bang e apostar figurinhas na calçada do cinema (“o suor vespertino nas axilas / molhava a máscara do Zorro / nas páginas do gibi”); muito menos de um menino que tomava banho nu no rio ("onde as águas são barrentas e as lavadeiras tristes"), deixando o calção em cima da pedra (“longe do corpo / e dentro deste o mesmo coração / ao sol”).
Quem queria saber? "A cidade ontem era outra / foi Crateús / quando volto crescido / no expresso rápido do zé arteiro / e procuro a asa que fui / na casa que foi", diz o poeta, num lamento de saudade.
O menino crescido volta à Fortaleza, pois, como o autor mesmo confessa em sua saga que "foi lá / onde o menino se fez adolescente (...) que o jovem se fez adulto (...) onde as vogais do interior / encontraram as consoantes das ruas”. Foi lá, nas cadeiras do colégio Liceu e dos cines Moderno, Diogo e São Luiz, que o intelectual se fez poeta e cineasta.
Trem da memória não é apenas aquele trem que trouxe Nirton pela primeira vez à cidade grande, senão um utilitário sentimental de que ele se vale para retornar, quantas vezes quiser, ao seu chão sagrado, em busca das estrelas pelas frestas das telhas (“e / caíam / lentas / em / minha / rede / de / brim...”); dos “personagens desse mundo lá de trás”; ler, como da primeira vez, o poema de “mãos dadas com Drummond”, que lhe fez descobrir o mundo.
O livro de Nirton Venancio é uma medula emotiva que acelera e sobe e desce e range em seu peito todas as noites quando vai dormir, partindo o homem em dois e o poeta em tantos…
Leiam!
- Valdi Ferreira Lima, poeta (Sobral, CE)
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O livro concorre ao Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br 

sábado, 20 de maio de 2023

o poema não acaba nunca

fortaleza seria logo ali

depois da bica do ipu
passando o arco de sobral
chegando nas bananeiras de caucaia
fortaleza seria logo além
da saudade do quintal de ibiapaba
da lembrança da cancela da fazenda
da memória da casa de oitão
fortaleza seria logo aquém
do meu pai que esperava
de minha mãe que guardava
do irmão que me olhava
(...)

O trem chegou à estação João Felipe
e continua nos trilhos de minha vida.
Na capital
as bancas com suas notícias
a Cruzeiro com a miss na capa
os cowboys destemidos da EBAL.
Puxo os vagões da memória até quando?
O poema não acaba nunca.
O que escrevo são incompletudes.


- Trechos de Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
O livro concorre ao Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br
Vídeo: Oitoemeio Filmes
Música, fragmento: Rain, in your black eyes, Ezio Bosso, 2016