sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Fortaleza


O que é essa cidade, nova,

senão o meu berço desfeito em outras paredes?
O que é essa distância
(medida a olho e lágrima)
senão o tamanho que me separa do riso
e da dúvida?
Foi lá
que
peguei o ônibus Tirol
que me levou ao cine Moderno
às poltronas do azul Diogo
aos lustres do rosa São Luiz
fui lá
que
me abriguei na central
da praça do Boticário Ferreira
que atravessei sem distinção as vitrines da loja Flama
nas noites de Natal sem presentes
foi lá
que
vesti a camisa branca do colégio Hélio Campos
nas dunas do Pirambu
(peixe-roncador
que vi de longe
na hora do recreio)
que
usei o uniforme crepe com franjas nos ombros
nas salas do Liceu
(paredes centenárias
que vi de perto
na aula de história)
que
assentei o linho engomado para a foto final
na mesa da diretoria
(caneta em punho
globo do lado
e o Brasil atrás no mapa)
mirando o retratista que eu queria ser
o futuro que eu seria o quê
o passado que escrevo aqui.
Foi lá em Fortaleza onde também sou.
O cheiro quente de café solúvel da capital
(antes de voltar a passeio para o sertão)
o odor amarelo de sol a pinho no banheiro
(depois de fazer o asseio no chão)
o aroma de leite de rosas de minha mãe
(sempre gotas entre os seios e o coração).
Foi lá onde também fui
que ouvi no rádio Armstrong pisar tão longe
enquanto tomava sorvete
para sanar as amígdalas retiradas
o astronauta demarcando meu satélite
o gelo desmarcando meu céu da boca
- eu não tinha mais úvula?
a Lua não era mais minha?
Foi lá onde também fui
que fiz o rancho Ponderosa perto do muro
na bonança com meus três irmãos,
e da janela do televizinho caía no
túnel do tempo
eu pequenino na sala terra de gigantes
doutor Edmilson
dona Terezinha
domingo depois da missa Navegantes
papai sabia de tudo
e
me contava doces
me estourava pipoca
me encontrava sorrindo.
O mesmo domingo que me daria o céu
nas jovens tardes de meus cabelos que cresciam
os Rataplans e seus chapéus azuis tocando
na Vila Beatriz
a mesma praça onde cantei minha juventude
e me perdi de amor pela saia plissada que passava
e nunca tive a moça perto de mim.
Foi lá onde as vogais do interior
encontraram as consoantes das ruas.
Foi lá que o minúsculo das cartilhas
juntou-se aos maiúsculos das pessoas.
Foi lá em Fortaleza,
onde meu sertão virou mar.
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Trecho do meu livro inédito ©Trem da memória - um poema
Editora Radiadora
Coordenação editorial
Alan Mendonça
Prefácio
Valdi Ferreira Lima
Lançamento adiado desde março. Aguardando quando for possível a aglomeração de afetos.
Foto ilustrativa para esta postagem:
Rua General Sampaio, Fortaleza, Ceará, década de 60
Arquivo Nirez

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