sábado, 21 de setembro de 2024

a borboleta póstuma


No capítulo 31 de Memórias póstumas de Brás Cubas, uma borboleta preta entra no quarto do personagem narrador – aquele que no início avisa não ser propriamente “um autor defunto, mas um defunto autor” - e esvoaça em torno dele, pousando-lhe na testa.

No capítulo anterior uma borboleta também voara pela varanda de Dona Eusébia. “T’esconjuro... sai, diabo!”, gritou assustada. Brás Cubas ao seu lado ri e com um lenço a expele para longe.
Mas agora a borboleta é outra, grande. Brás a sacode repulsivamente e ela voa para a vidraça. Com as latitudinais asas, ele vê que é “negra como a noite”. Novamente a espanta. A borboleta segue para o “velho retrato de meu pai” sobre o aparador. “Um certo ar escarninho” aborrece Brás, que sai do quarto. Quando volta, a hóspede importuna continua, profusa em sua cor. Brás não se vale mais de um lenço, pega uma toalha e bate-lhe com “um repelão dos nervos”.
Vendo a coitada que ainda se torcia, "e movia as farpinhas da cabeça", ele se arrepende, mas não pôde fazer nada. Pega o vaporoso corpo e na palma da mão faz o traslado até o peitoril da janela. Ainda assiste aos últimos suspiros.
Brás Cubas entra num fluxo de reflexões, tentando se justificar para que a consciência possa dormir tranquila. “Também por que diabo não era ela azul?”, disse consigo. Desenvolve-se uma das melhores passagens desse livro que inaugurou em 1891 o Realismo na literatura brasileira, um monumento em tom cáustico que discorre em digressões, crítica e humor.
Brás Cubas questiona princípios em sua fala interior sobre a toalhada no inseto. Se a borboleta fosse azul ele teria o mesmo impulso? Alguns não são iguais porque têm cores distintas, pulsa o subtexto. Machado de Assis, o autor por trás da pena, negro pintado de pardo e embranquecido pelas elites ao longo da história. Ele nas membranas da borboleta. A intertextualidade social e racial.
Recentemente, numa tarde, uma enorme borboleta preta entrou em minha sala. Fez um voo em minha volta, e assim como Dona Eusébia, me assustei. Mas não esconjurei. Ela pousou no teto e fiquei na verticalidade do encantamento: belíssima com suas patinhas ventosas desafiando a gravidade. Lembrei de imediato do capítulo. E até desejei que descesse e pousasse em minha testa. Não a repeliria e sentiria sua leveza quase holográfica. Mas não veio. Surpreendentemente vi que ela taxiara a pouco mais de um metro da estante, na ponta onde está a prateleira com os livros do santo de quem sou devoto: Machado de Assis.
Por alguns minutos ficamos no silêncio próprio dos afetos quando se encontram. Sua anatomia negra como a noite no céu branco do teto. Mexi-me pelo cansaço da posição, ela bateu asas e graciosa atravessou a janela, desenhando no ar um rápido vórtice de bailarina. Fui até a sacada acompanhar o seu voo no azul que lhe pertence. O adejo preto reticenciou até virar pontinho e sumir. Ela continuou enorme com suas asas abertas em minha memória.
E fui reler o capítulo 31.

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