sexta-feira, 13 de setembro de 2019

arqueologia dos afetos

Numa tarde de um dia qualquer, mas especial, do comecinho dos anos 80, em Fortaleza, o meu amigo compositor Ricardo Augusto entra na sala de audiovisual da Centro de Referência Cultural, da Secretaria de Cultura, onde eu trabalhava, com um violão e o cantor Lucio Ricardo. O órgão estadual ficava nos andares da Biblioteca Pública Menezes Pimentel, hoje integrada arquitetonicamente ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.

De um janelão, eu via os históricos galpões da antiga área portuária, o centenário prédio da Alfândega (hoje Caixa Cultural)... Meus olhos de planador sobrevoavam os telhados, chegavam à praia de Iracema e se perdiam no mar... Assim, os primeiros versos do meu poema Ventania foram paridos nessa brisa vespertina.

Passei meses com os rascunhos no bolso, sempre mexendo quando alguma palavra precisava ser tirada, alguma pontuação precisava melhorar o ritmo da leitura. Convivendo com o poema antes de escrevê-lo, como ensinava Drummond. Finalizado, foi publicado no meu primeiro livro, Roteiro dos pássaros. E nele Ricardo Augusto leu, e musicou, num dos mais belos e gratificantes encontros de verso e melodia. Cantou para mim com sua voz de Beto Guedes em Albey Road e me desmanchei em alegria. Não sou letrista, e o poema se fez canção.

Pois naquela tarde Ricardo adentra a sala com Lucio Ricardo para gravar a composição. Ele, o bandleader de voz única da lendária banda de blues e rock Perfume Azul, que eu “perseguia” na adolescência nos shows na década de 70. E de forma empolgante e artesanal, gravamos num dinossáurico AKAI, em fita de rolo BASF, ¼ de polegada, um canal, Lucio cantando Ventania e Ricardo ao violão.

Em 2013, a cantora Mona Gadelha grava a música em seu disco Cidade blues rock nas ruas, num arranjo coletivo belíssimo de estúdio, com a produção de Alexandre Fontanetti. Ela, a minha musa do blues e da cor dos meus sonhos, que eu “perseguia” nos shows do IBEU e da arena da CREDIMUS.

Como se não bastasse a versão blues-standard-banquinho-e-violão de Lúcio Ricardo, Mona me presenteia com sua interpretação visceralmente mergulhada na letra e melodia, sua voz desenhando meu canto feminino sobre o mar.

O poema é uma tentativa de reflexão existencial, tão comum, e necessária, na inquietação e perplexidade que inspiram os poetas em seus primeiros rabiscos. Ricardo Augusto vestiu com melodia uma letra sem rima, que se destinava ali mesmo na limitação de um poema num livro. Lucio Ricardo e Mona Gadelha despiram a alma do poema com suas interpretações únicas.

E assim se marcam os encontros que o universo trama, cristalizam os afetos que “estendem os braços / como se fossem mágicos”, como digo em um verso.

No ano de lançamento do disco de Mona Gadelha, o cineasta Valdo Siqueira concebeu e dirigiu o clipe de Ventania (já postado aqui, https://youtu.be/dl0AzBBaxIk). E mais uma vez, como se não bastassem Ricardo, Lúcio e Mona, o cinema, que é igualmente minha praia lírica, dá mais um corpo a um poema-que-se-tornou-música-imagem. Valdo, como um Dziga Vertov na praia de Sabiaguaba, expressa com sua câmera a sinestesia dos versos que “atravessam o mar / como se fossem pássaros”.

O músico Kildare Rios posta nesta manhã de sexta-feira, em seu canal no Youtube, o clipe da gravação do neolítico áudio de Lúcio Ricardo, criando e mixando afetuosamente em estúdio os arranjos, colando digitalmente imagens que ele vê na letra. E assim, mais uma vez, como se não bastassem Ricardo, Lúcio, Mona e Valdo, Kildare dá um corpo carinhosamente singelo de um poema que nunca pensou em ser canção.

A ventania ficou calmaria nos corações entrelaçados.

Gratidão a vocês.

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