segunda-feira, 27 de abril de 2020

lanterna mágica

Poty
o mesmo nome das águas
que banhavam o meu corpo:

                                        rio


o mesmo nome da correnteza
que lavava a minha alma:
                                    cinema.


E caminhava o menino
em direção ao cine poty do ‘seu’ dedé
(como disseram que caminhava assim o meu bisavô
de bengala e chapéu para a tela muda)


o suor vespertino nas axilas
molhava a máscara do zorro
nas páginas do gibi


a troca das revistinhas no chão da calçada
à espera do quadrado da bilheteria abrir
o ingresso impresso na tipografia do ‘seu’ mimoso
as cadeiras de madeira nas costas miúdas
o ventilador barulhento feito um catavento


luz da lanterna mágica por trás de todos
mostrando na parede de cal
o mundo colorido em preto-e-branco:


(a cachoeira que humberto mauro
me banhou quando cresci)

:
24 quadrinhos por segundo
movimentavam em minhas retinas


loone ranger
                  e eu cavaleiro solitário
                  igualmente tonto

tim holt
           meu primeiro caubói
           do tempo das diligências

tarzan
         que eu não sabia pronunciar
         nem nadar como ‘jonivesmule’

carlitos
           eu garoto em sua ribalta
           órfão em minha estrada.


Eles se recolhiam na escuridão da cabine
quando as luzes acendiam e o vento apagava


o olhar oblíquo do menino imaginava-os
quietos
           cansados
                         sagrados

nos rolos dentro das latas dentro de mim:
35mm de extensão em meu coração.


A noite começava na rua pedro primeiro
: o menino foi ao cinema
e perdeu-se
no caminho
de volta
para casa.


Longe da sala do ‘seu’ dedé,
era tudo tão real, tudo tão feio.


E o mundo, o mundo, o mundo...
se eu me chamasse drummond
não seria sol nem unção
seria siriará sina sertaneja.

........................................................................................
Trecho do meu próximo livro
Trem da memória – um poema
Editora Radiadora
Coordenação editorial: Alan Mendonça
Prefácios:
duas viagens no trem
- Valdi Ferreira Lima
- Mailson Furtado

Lançamento que teria sido nas águas de março do rio Poty foi adiado para quando toda essa enchente virótica passar, e os 'hábraços' voltarem.
Foto ilustrativa para esta postagem:
o ator Salvatore Cascio em um frame de Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, Itália/França, 1988, ano em que dirigi meu primeiro curta-metragem, Um cotidiano perdido no tempo, rodado em Crateús, Ceará, cidade em que a memória viaja nas 88 páginas do livro-poema.
A simetria do infinito no cinema e na literatura em minha vida finita.

Nenhum comentário: