O
escritor e engenheiro mecânico naval inglês William McFree (1881-1966), que se
dedicava a pensar viagens e oceanos em seus livros, condicionava que "O mundo não está interessado nas
tempestades que você encontrou. Querem saber se trouxe o navio”. Lembrei-me
dessa máxima ao terminar a leitura de Velas
náufragas (Editora Penalux, 2019), do poeta piauiense, e agora também
brasiliense, Diego Mendes Sousa.
Dividido
em Opus e seus cantos e líricas, o livro é de uma preciosidade narrativa
encantadora, de fôlego único pelas águas e costas de cada verso. Há uma
condução interna e estética de movimentos das marés nesse memorial litorâneo e
barroco. Diego constrói no longo poema, na estrutura mítica de uma caravela, o
seu épico íntimo de marinheiro poético em sua natal Parnaíba, onde o Delta é o
único em mar aberto para as Américas. Os versos de seus olhares iniciais foram
quando o autor tinha “a idade eternal de
Castro Alves”, como aponta no primeiro poema, Seres aladinos, e tem ele a precocidade de talento do seu
conterrâneo Mário Faustino.
“Peixes, / Caranguejos, / Cavalos-Marinhos,
Camarões / Tartarugas, Siris”, “Carnaúbas / Coqueiros, Cajueiros, Pedras, /
Ventos, Mares, Mangues, Lagoas, Rios, Xananas”, toda paisagem de alma litorânea habita a vida do poeta e
sua infância que se espalha pelas páginas molhando os pés do leitor. Todos
esses seres, vistas e horizontes que Diego grafa em maiúsculas, dão a
importância merecida dos nomes próprios, a mesma referência e reverência a
Evandro Lins e Silva, Assis Brasil, Alberto Silva e dezenas de outros citados
pela devoção do autor. O coração do poeta “é
uma inscrição / precisa ao evocar os seres aladinos”.
Mas
é no arquétipo dos caranguejos, dos siris, das lagostas, que Diego atesta e
solidifica “o amor sublimado
predestinado” do poeta nas águas barrentas e seus afluentes de inspiração.
Foram esses pequenos seres de carapaça dura que “ensinaram-me a nadar / na solidão dos dias emirados sob as águas”,
designa o autor na sua anatomia existencial. Todos diante do “horizonte fascinante” entre o rio
Igaraçu e a Serra da Ibiapaba.
Assim
como os navegadores antanhos Nicolau de Rezende e Gabriel Soares de Sousa
adentraram o delta, o poeta legitima e destemidamente palmilha “arcaicos tombos imemorais / a sina
destina-se ao fim / de tudo:”, o filho desvanecido que é de seu chão
sagrado e sua poesia vivendo “da espinha
dos peixes”, “do sal privilegiado dos
camarões crescidos” e do “batuque do
bumba-meu-boi” que por lá os povos inventaram e dançam. “Eita boi, / boi... Eita boi, boi”, eita poeta “que vive do seu / sopro de mar” e ventos
das dunas.
Se
“O amor é como um chão de neve também
horizontal”, Diego Mendes Sousa edificou com os alicerces de seu coração a
cidade imaginária Altaíba, geografia afetiva onde somente ele reside ao lado do
“amor transcendido dos / mangueizais
femininos da Altair”. O poeta sedimenta em sua alma litorânea um burgo
muito mais distinto do que Pasárgada, onde Bandeira era amigo do rei e
escolheria uma mulher; urbe mais eterna que Itabira que se tornou apenas uma
fotografia na parede e como doía em Drummond; aldeia muito mais polida do que
Macondo, onde García Márquez viveu sua solidão centenária. A cidade do poeta é
conjugação no indicativo presente, “atmosférico
/ e intensamente marítimo”; está em Parnaíba como está no mundo, está em
Altair como está em Diego.
O poema
no livro não acaba nunca porque o autor volta sempre ao “coração dos mangues”. Meu texto não termina aqui porque continuo
içando velas onde me encontro ao auscultar o “coração costeiro” do poeta.
Ao
contrário do que sentenciou William McFree, Diego Mendes Sousa trouxe o navio e
contou as tempestades que enfrentou. Caranguejos, siris, tartaruguinhas e tudo
mais, agrupados na praia para ouvir as histórias de além-mar.
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