segunda-feira, 14 de outubro de 2024

velas da memória


O escritor e engenheiro mecânico naval inglês William McFree (1881-1966), que se dedicava a pensar viagens e oceanos em seus livros, condicionava que "O mundo não está interessado nas tempestades que você encontrou. Querem saber se trouxe o navio”. Lembrei-me dessa máxima ao terminar a leitura de Velas náufragas (Editora Penalux, 2019), do poeta piauiense, e agora também brasiliense, Diego Mendes Sousa.

Dividido em Opus e seus cantos e líricas, o livro é de uma preciosidade narrativa encantadora, de fôlego único pelas águas e costas de cada verso. Há uma condução interna e estética de movimentos das marés nesse memorial litorâneo e barroco. Diego constrói no longo poema, na estrutura mítica de uma caravela, o seu épico íntimo de marinheiro poético em sua natal Parnaíba, onde o Delta é o único em mar aberto para as Américas. Os versos de seus olhares iniciais foram quando o autor tinha “a idade eternal de Castro Alves”, como aponta no primeiro poema, Seres aladinos, e tem ele a precocidade de talento do seu conterrâneo Mário Faustino.

“Peixes, / Caranguejos, / Cavalos-Marinhos, Camarões / Tartarugas, Siris”, “Carnaúbas / Coqueiros, Cajueiros, Pedras, / Ventos, Mares, Mangues, Lagoas, Rios, Xananas”, toda paisagem de alma litorânea habita a vida do poeta e sua infância que se espalha pelas páginas molhando os pés do leitor. Todos esses seres, vistas e horizontes que Diego grafa em maiúsculas, dão a importância merecida dos nomes próprios, a mesma referência e reverência a Evandro Lins e Silva, Assis Brasil, Alberto Silva e dezenas de outros citados pela devoção do autor. O coração do poeta “é uma inscrição / precisa ao evocar os seres aladinos”.

Mas é no arquétipo dos caranguejos, dos siris, das lagostas, que Diego atesta e solidifica “o amor sublimado predestinado” do poeta nas águas barrentas e seus afluentes de inspiração. Foram esses pequenos seres de carapaça dura que “ensinaram-me a nadar / na solidão dos dias emirados sob as águas”, designa o autor na sua anatomia existencial. Todos diante do “horizonte fascinante” entre o rio Igaraçu e a Serra da Ibiapaba.

Assim como os navegadores antanhos Nicolau de Rezende e Gabriel Soares de Sousa adentraram o delta, o poeta legitima e destemidamente palmilha “arcaicos tombos imemorais / a sina destina-se ao fim / de tudo:”, o filho desvanecido que é de seu chão sagrado e sua poesia vivendo “da espinha dos peixes”, “do sal privilegiado dos camarões crescidos” e do “batuque do bumba-meu-boi” que por lá os povos inventaram e dançam. “Eita boi, / boi... Eita boi, boi”, eita poeta “que vive do seu / sopro de mar” e ventos das dunas.

Se “O amor é como um chão de neve também horizontal”, Diego Mendes Sousa edificou com os alicerces de seu coração a cidade imaginária Altaíba, geografia afetiva onde somente ele reside ao lado do “amor transcendido dos / mangueizais femininos da Altair”. O poeta sedimenta em sua alma litorânea um burgo muito mais distinto do que Pasárgada, onde Bandeira era amigo do rei e escolheria uma mulher; urbe mais eterna que Itabira que se tornou apenas uma fotografia na parede e como doía em Drummond; aldeia muito mais polida do que Macondo, onde García Márquez viveu sua solidão centenária. A cidade do poeta é conjugação no indicativo presente, “atmosférico / e intensamente marítimo”; está em Parnaíba como está no mundo, está em Altair como está em Diego.

O poema no livro não acaba nunca porque o autor volta sempre ao “coração dos mangues”. Meu texto não termina aqui porque continuo içando velas onde me encontro ao auscultar o “coração costeiro” do poeta.

Ao contrário do que sentenciou William McFree, Diego Mendes Sousa trouxe o navio e contou as tempestades que enfrentou. Caranguejos, siris, tartaruguinhas e tudo mais, agrupados na praia para ouvir as histórias de além-mar.



 

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