terça-feira, 29 de novembro de 2005

fase única

foto Chip Hooper

Todas as noites
tem lua cheia no meu coração:

clara clareia meu peito
derrama demais sua prata
em meu chão.

 
(do livro “Poesia provisória")

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

viveiro

foto Hoffman Nicolas
Meu jogo é com a vida
com o que ela
guarda dos meus olhos
no momento em que mais preciso
de luz sobre os meus cabelos.

Não preparo minha roupa
diante do espelho
para a surpresa da morte
(ou escuro que o valha):

preparo-me (sim!)
a cada instante
para a claridade do dia
(ou surpresa que me complete)
e traço sereno
os moldes de minha pele
sobre o coração
que é um pássaro solto
dentro de mim.

(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

sobre viver

nanquim sobre papel, Gil Vicente

só escaparemos se conversarmos
se sentarmos à mesma mesa
e trocarmos olhares
como amigos
ou sobreviventes.

(do livro “A distância e a paisagem – Brasília e outras viagens”)

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

atemporal

foto Michel Touraine


Quando você chega
não é mais noite nem dia
- é alguma estação longe dos calendários.

O tempo e o corpo avançam
mar a dentro da gente
onde a única lembrança
(se saudade fosse)
é a de quando éramos estranhos
em algum porto da cidade.


(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

grito

foto Olga Gouveia


Quando esse grito
sair
romper as paredes
descer as escadas
tomar as ruas

e soltar bem alto teu nome

assustarei
a cumplicidade da ausência
e da distância
que contra mim conspiram.

(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 13 de novembro de 2005

migrante

foto Lars Ihring

I

em que acreditar
além da cidade onde queremos morar
e em sua direção
afivelamos nossas malas
(com roupas e retratos)
enchemos nosso peito
(de esperança e saudade)
abrimos nossos olhos
(de horizonte e espanto)?

em que acreditar
nessa (qualquer) cidade
construída de concreto e traços
além da argamassa dos nossos sonhos?

mas se na cidade
cabe a pedra
cortada em mil pedaços sobre a solidão
caberá (muito mais)
a nossa vontade
solta em muitos corações e braços
povoando a paisagem e a distância.


II

o que faz uma cidade crescer
sob o sol
sobre o peito
dentro do homem?

o que faz um homem crescer
sob o sol
com dor no peito
dentro da cidade?



III

o que é uma cidade
na história de
um homem?
não se sabe ao certo
como não se explica
por que esse homem respira
e o que alimenta
tantos desejos

a cidade
(no final das contas
e das ruas)
é mistura confusa
de susto e alívio
que abraça e larga
nossa carne
como quem ama e desaparece

apesar dos desenhos
que orientam o presente
a cidade
é o mistério
sobre a cabeça desses animais
que caminham sobre passos
novos a cada desejo
grandes a cada abraço
profundos a cada vontade.

(do livro “A paisagem e a distância – Brasília e outras viagens")

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

regime

foto Jonnie Miles

Tenho seus beijos
como medida.
Não ponha açúcar no café.

De doce basta a vida.

(do livro “Raios”)

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

solo

foto Sascha Hüttenhain

Agora que chorei todas as dores
desse e de outros amores
que rimei nosso caso com circo de horrores
e fiquei olhando sobre o mar
um tempo que se foi...

agora que alguns amigos viajaram
e alguns outros que ficaram, saíram...

agora quando me deparo com o espelho no corredor
pergunto sem esperar resposta:
quando continuo senão agora
que tenho o saldo de algumas horas
e restam algumas roupas no armário
e novos mapas traço no vão da sala?

Quando senão agora
quando me resta o descompasso desse tango solitário
estrada afora?

(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 6 de novembro de 2005

hábito

foto Alberto Monteiro

I
As horas cortam o pulso
friamente
e (ainda) não aprendemos a estancar
o sangue
que de tanto correr
transborda os dias.

II
Sobre a pele solitária e nua
o tempo se estende
(sem encalço)
a caminho das rugas
e é preciso (agora!)
o gosto eterno
de cada instante
na porosidade dos lábios.

III
O que se passa lá fora
(bem adiante do nariz)
é tudo que se pode pegar
apesar das mãos tão curtas
e do coração aflito.

IV
De espanto já é feita
nossa roupa
caída
sobre
os
ombros:
nos cabe este grito
e este jeito (quase) suicida
de
atravessar a escuridão quando
abrimos os olhos.

V
As ruas estão marcadas
com o calor dos sapatos
e (nelas)
circundam os homens
que perderam nos dedos
a idade
e trazem no peito
uma história
e a distância das ilhas.
VI
Todos acumulam conversas
com seus botões
agarram-se aos olhares
na solidão disfarçada sobre o tráfego
e (entre os habitantes)
a tarde
cai
como quem de cansaço adormece
ao longe.

VII
Mas o hábito
de viver
reconstrói as nuvens
e ergue as cidades.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 1 de novembro de 2005

cumplicidade

foto Annie Brigman


O melhor momento
é ser contigo sempre
pois não se larga uma parte de si
não se parte da largura de si.

(do livro “Poesia provisória")