sexta-feira, 18 de outubro de 2024

o que escrevo me entrega


Bússola, do meu livro Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019), parte 1, Explorar as tardes.
Com a primeira edição esgotada, a Editora está providenciando uma nova tiragem.
Coordenação editorial, Alan Mendonça; prefácio, Carlos Emílio Correia Lima; desenho da capa, Fausto Nilo. 


 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

velas da memória


O escritor e engenheiro mecânico naval inglês William McFree (1881-1966), que se dedicava a pensar viagens e oceanos em seus livros, condicionava que "O mundo não está interessado nas tempestades que você encontrou. Querem saber se trouxe o navio”. Lembrei-me dessa máxima ao terminar a leitura de Velas náufragas (Editora Penalux, 2019), do poeta piauiense, e agora também brasiliense, Diego Mendes Sousa.

Dividido em Opus e seus cantos e líricas, o livro é de uma preciosidade narrativa encantadora, de fôlego único pelas águas e costas de cada verso. Há uma condução interna e estética de movimentos das marés nesse memorial litorâneo e barroco. Diego constrói no longo poema, na estrutura mítica de uma caravela, o seu épico íntimo de marinheiro poético em sua natal Parnaíba, onde o Delta é o único em mar aberto para as Américas. Os versos de seus olhares iniciais foram quando o autor tinha “a idade eternal de Castro Alves”, como aponta no primeiro poema, Seres aladinos, e tem ele a precocidade de talento do seu conterrâneo Mário Faustino.

“Peixes, / Caranguejos, / Cavalos-Marinhos, Camarões / Tartarugas, Siris”, “Carnaúbas / Coqueiros, Cajueiros, Pedras, / Ventos, Mares, Mangues, Lagoas, Rios, Xananas”, toda paisagem de alma litorânea habita a vida do poeta e sua infância que se espalha pelas páginas molhando os pés do leitor. Todos esses seres, vistas e horizontes que Diego grafa em maiúsculas, dão a importância merecida dos nomes próprios, a mesma referência e reverência a Evandro Lins e Silva, Assis Brasil, Alberto Silva e dezenas de outros citados pela devoção do autor. O coração do poeta “é uma inscrição / precisa ao evocar os seres aladinos”.

Mas é no arquétipo dos caranguejos, dos siris, das lagostas, que Diego atesta e solidifica “o amor sublimado predestinado” do poeta nas águas barrentas e seus afluentes de inspiração. Foram esses pequenos seres de carapaça dura que “ensinaram-me a nadar / na solidão dos dias emirados sob as águas”, designa o autor na sua anatomia existencial. Todos diante do “horizonte fascinante” entre o rio Igaraçu e a Serra da Ibiapaba.

Assim como os navegadores antanhos Nicolau de Rezende e Gabriel Soares de Sousa adentraram o delta, o poeta legitima e destemidamente palmilha “arcaicos tombos imemorais / a sina destina-se ao fim / de tudo:”, o filho desvanecido que é de seu chão sagrado e sua poesia vivendo “da espinha dos peixes”, “do sal privilegiado dos camarões crescidos” e do “batuque do bumba-meu-boi” que por lá os povos inventaram e dançam. “Eita boi, / boi... Eita boi, boi”, eita poeta “que vive do seu / sopro de mar” e ventos das dunas.

Se “O amor é como um chão de neve também horizontal”, Diego Mendes Sousa edificou com os alicerces de seu coração a cidade imaginária Altaíba, geografia afetiva onde somente ele reside ao lado do “amor transcendido dos / mangueizais femininos da Altair”. O poeta sedimenta em sua alma litorânea um burgo muito mais distinto do que Pasárgada, onde Bandeira era amigo do rei e escolheria uma mulher; urbe mais eterna que Itabira que se tornou apenas uma fotografia na parede e como doía em Drummond; aldeia muito mais polida do que Macondo, onde García Márquez viveu sua solidão centenária. A cidade do poeta é conjugação no indicativo presente, “atmosférico / e intensamente marítimo”; está em Parnaíba como está no mundo, está em Altair como está em Diego.

O poema no livro não acaba nunca porque o autor volta sempre ao “coração dos mangues”. Meu texto não termina aqui porque continuo içando velas onde me encontro ao auscultar o “coração costeiro” do poeta.

Ao contrário do que sentenciou William McFree, Diego Mendes Sousa trouxe o navio e contou as tempestades que enfrentou. Caranguejos, siris, tartaruguinhas e tudo mais, agrupados na praia para ouvir as histórias de além-mar.



 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

o sopro da poesia


Foto: Altair Marinho

Nirton,
Você como alto poeta que é, sabe como ninguém que realmente a poesia é provisória.
A poesia sopra, acha o tom, revela a voz e vai embora. É uma hóspede do poema e a febre do poeta.
Li Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019) com os olhos acesos, captando o rastro da poesia que lhe assalta o sentir. Seu livro está prenhe de sentimentos. Comoveu-me.
Você disse em Viés:
O poeta percebe
de forma estranha.
Por isso percebe.
Mais do que a percepção é a revelação do existir. Sua poesia é de vida vivida e de tempo temporão.
É do seu estro Turnos:
Os poetas
dormem tarde.
A poesia
é que acorda cedo.
Mui belo isso!
O poema Quimera, isso, sim, é boa imagem:
---------------O-lençol-no-varal---------------
é sempre
um poema
ao
vento...
Minha admiração,
Diego
.
Fortuna crítica e afetiva de um dos maiores poetas da literatura brasileira contemporânea, Diego Mendes Sousa.
Com a primeira edição esgotada, a Editora está providenciando uma nova tiragem.
Coordenação editorial, Alan Mendonça; prefácio, Carlos Emílio Correia Lima; desenho da capa, Fausto Nilo.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

sobre viver


Foto: Aleksandr Ródtchenko, 1924

Durante a escuridão da pandemia, revisitei várias obras literárias que me acolheram com a beleza dos reencontros e o prazer que a palavra provoca entre o real e o imaginário, entre o tempo e a pedra, entre o desencanto e a esperança.
E entre tantas releituras nos vagões daqueles dias, um dos maiores de todos os tempos: Vladimir Maiakovski. Voltei a sua casa em uma de suas obras-primas, Sobre isto, de 1923. Intenso como tudo que escreveu em tão pouco tempo.
Em 2019 a Editora 34 relançou no Brasil o belíssimo livro-poema em uma primorosa edição bilíngue, acrescida de notas e estudo crítico de Letícia Mei, tradutora, uma seleção de cartas, ilustrações e fotomontagens do artista gráfico e fotógrafo Aleksandr Ródtchenko, amigo do poeta.
Maiakovski escreveu o longo poema em estado de dilaceramento do coração, recluso em seu pequeno apartamento em Moscou, entre os angustiantes meses de dezembro de 1922 a fevereiro do ano seguinte. Ele se separara de Lilya Brik, seu grande amor, depois de uma grave discussão, quando se viu ferido justo na garganta pela flecha preta do ciúme, como diz Caetano Veloso em sua caudalosa canção. "Tudo sempre esbarra embriagado de seu lume".
“Sem você eu paro de existir”, escreveu o poeta em uma carta à amada, concordando com o pacto de silêncio e distanciamento entre ambos, para evitar o contágio da espuma das bocas desfeitas quando “dos olhos desfez a última chama”, que Vinicius versejou em seu soneto de 1938., quando um se rebate em dois e uma fenda no meio.
Maiakovski partiu para o exílio entre quatro paredes, onde fui visitá-lo em cada cômodo de página que relia, em cada corredor de versos que transpassava com meu coração ouvinte. Confortávamo-nos em nossas dores distintas. Ele me ouvia enquanto o lia; eu o escutava em seu silêncio pretérito.
Político e lírico ao mesmo tempo, Maiakovski entregou-se a esse livro na mesma proporção que se entregava a uma causa do mundo. Se odiava a mesmice da vida burguesa, a inércia e a imobilidade, o poeta canta e desencanta o amor porque esse é também doído e corroído pela miséria de todos os dias.
Morto em 1930, desfazendo-se em ato extremo, aos 36 anos, Maiakovski considerava o livro, um manifesto sobre graça e sortilégios do amor, sua melhor obra. "Quero viver até o fim o que me cabe!", preconizou em verso-lápide no poema.
Sobre isto inspirou Caetano Veloso a compor O amor, fragmento adaptado, gravado pela interpretação magnífica de Gal Gosta no disco Fantasia, 1981. Nos versos mais cortantes Maiakovski pede que “Ressuscita-me, / nem que seja só porque te esperava / como um poeta, / repelindo o absurdo quotidiano!”, ao que o compositor baiano arrematou com um risco de esperança: “Ressuscita-me ainda que mais não seja / porque sou poeta / e ansiava o futuro”.
Entre o mundo lá fora e o quarto cá dentro, entre as causas de dores externas e os causos de horrores internos, entre os amores e tantos outros precipícios, entre o cubofuturismo russo e o barroco recôncavo de Santo Amaro, os poetas auscultam os corações dos poetas.


 

sábado, 5 de outubro de 2024

meus Franciscos

Ele foi canonizado dois anos depois da morte, em 1228, pelo Papa Gregório IX.
Hoje, a fé cristã, em festa litúrgica, celebra e espalha o canto em seu louvor. O legado de suas ideias e o seu exemplo de vida fazem de São Francisco o mais amado na constelação hagiológica.
Ele apreciava a música, a poesia, usava as encenações em suas pregações. Dizia que a arte era um instrumento necessário para o cultivo da devoção. E repartia com os pássaros o pão que trazia para os dias de meditação e oração.
O poeta florentino do século 13, Dante Aligheri, aquele que atravessou o inferno, o purgatório e o paraíso em A divina comédia", no 50º verso de Canto XI de Paraíso de sua obra máxima, refere-se a Giovanni Di Pietro Di Bernardone, nome de batismo de Francisco, dizendo que "Nasceu ao mundo sol tão luminoso".
De Assis, na Itália, “onde tanta gente cala, tanta gente canta”, ao sertão de Canindé, “com tanta gente andando a pé" e "tantas almas esticadas no curtume", "dorme o sol a flor do Chico" a nossa fé.
Trago por dentro em meu peito uma medalha de São Francisco, que passou entre os dedos, pescoço e colo de minha avó e de minha mãe, e é o santo nome de outro Francisco, meu pai. Trindade em minha vida.
Com eles, igualmente canonizados em meu coração, conclamo uma legião com Padre Cícero de Juazeiro do Norte, Nossa Senhora de Assunção, padroeira de minha cidade, Padre Mororó, revolucionário que liderou o repúdio de Quixeramobim ao autoritarismo do D. Pedro I, e Bárbara de Alencar, nossa heroína da Confederação do Equador, façam uma frente de querubins e serafins e intercedam junto ao rebento sagrado por nossa saúde, façam "o mal inclemente se arretirar", e benzam a sabedoria da ciência na cabeça dos homens, trabalho e comida, diversão e arte, abraço e afeto no coração de todos.
“Se eu não rezei direito, o Senhor me perdoe”, “só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar...”
Acima, São Francisco e cenas de sua vida, de Bonaventura Berlinghieri, 1235, a mais antiga pintura representando o Santo. 



 

domingo, 29 de setembro de 2024

domingo com Machado

Usando uma linguagem mais apropriada à escrita do século 19, neste domingo, 29 de setembro, completam 116 anos do passamento de Machado de Assis.

De sua vasta e monumental literatura, lembrei-me do conto Uns braços, inserido na coletânea Várias histórias, originalmente publicada em 1896. Assim como os outros quinze que compõem o volume, são contos que Machado publicou de 1984 a 1891 no jornal carioca Gazeta de Notícias. Veio-me à lembrança porque o núcleo do enredo se desenvolve num domingo.

O conto narra as agruras e encantamento do adolescente Inácio, de “quinze anos feitos e bem feitos”, por Dona Severina, com “vinte e sete anos floridos e sólidos”, esposa de seu patrão, o advogado Borges, sempre zangado e grosseiro, que trata o rapaz com rispidez quando não faz o serviço do seu jeito e a tempo. Inácio fora trabalhar ajudante e escrevente por recomendação do pai, na esperança que o filho fizesse carreira e chegasse ao foro, “porque lhe parecia que os procuradores de causa ganhavam muito”.

Morando num quarto nos fundos da casa do casal, Inácio por várias vezes ensaiou ir embora, cansado dos impropérios do patrão. Sempre desistia da ideia porque estava confuso e apaixonado por Dona Severina, mais exatamente pelos delicados braços que ela deixava desnudos, costume ousado para a época. “Alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa à primeira flor”, analisa Machado o deslumbramento do rapaz.

Inácio só via Dona Severina três vezes ao dia, à mesa durante as refeições. Ela começou a notar os olhares no par de braços, sempre à mostra “meio palmo abaixo do ombro”. O jovem tem cuidado, dissimula o gesto, pois “Nunca ele pôs os olhos (...) que não esquecesse de si e de tudo”. Dona Severina aos poucos encanta-se também com aquele fascínio, percebe “que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos limiares sociais”. Numa noite, durante o jantar, viu “que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço”, boca para ser “afagada e beijada”. “Uma criança!”, reage a mulher, refutando  o pensamento que “abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.”

“Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousa”, compara Machado ao colocar Dona Severina cedida à “tentação diabólica”. Uma noite ela vai ao quarto do rapaz. Adentra silenciosamente e o encontra adormecido na rede, “a cabeça inclinada, o braço caído” e um folheto que foi chão quando o sono bateu. Dona Severina achou-o “muito mais bonito que acordado”. Aproxima-se, pega-lhe as mãos, e inclinando-se, “abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca”. O rapaz não acorda. Ela levanta-se, foge à porta, “vexada e medrosa”.

Teria Inácio sonhado aquele encontro secreto e ousado? Ou “Dona Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz”? A genialidade de Machado de Assis minudencia uma narrativa que deixa o leitor com mesma pergunta se Bentinho foi ou não traído por Capitu, em Dom Casmurro. É igualmente um dos mais belos e criativos questionamentos da literatura brasileira. A ambiguidade que mostra o ser humano emaranhado nas emoções que misturam o real e o imaginário.

Inácio, no dia seguinte, acha que sonhou naquela noite. Era domingo, ele nunca esqueceu. “O dia estava lindíssimo. Não era um domingo cristão, era um imenso domingo universal”.

 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

armando e desarmando palavras


Foto: Acervo Jogos Florais, site de crítica e poesia, 2019

Em 2018, dias após o resultado das eleições que deu vitória à alma-sebosa-inominável, eu olhava pela janela um céu cinzento. Era um sábado à tarde, e parecia que o ar incorporava a gosma e asco que aquele sujeito representava. Lembrei da frase de Millor Fernandes, na verdade um trecho, extraído do verbete Arqueologia, do volumoso Millôr definitivo: a bíblia do caos, 1994: “...o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás. Se preferem.”. Os dois lados latitudinais no tempo foram preferíveis e aplicáveis, distópico eu que estava.

Fui à estante e na prateleira de poesia peguei aleatoriamente um livro para fugir daquela tristeza ou me confortar ou me esperançar ou sei-lá-o-quê. E o acaso – se acaso existe – escolheu Cabeça de homem, 1991, de Armando Freitas Filho, que partiu hoje aos 84 anos.
Seguindo o ritmo fortuito na companhia de uma ótima cabeça como a de Armando Freitas, abri na página com o poema Sem acessórios nem som. Li ali mesmo, em pé, como num ofertório, em voz cúmplice com o poeta. Ao término, tudo tinha a ver com o que eu estava sentido diante do caos e das bíblias que se anunciavam para os próximos quatro anos. Sentei-me à janela e li novamente, agora em voz alta, sem acessórios, somente o som da minha perplexidade ao ver a que ponto tínhamos chegado naquela eleição:
Escrever só para me livrar
de escrever.
Escrever sem ver, com riscos
sentindo falta dos acompanhamentos
com as mesmas lesmas
e figuras sem força de expressão.
Mas tudo desafina:
o pensamento pesa
tanto quanto o corpo
enquanto corto os conectivos
corto as palavras rentes
com tesoura de jardim
cega e bruta
com facão de mato.
Mas a marca deste corte
tem que ficar
nas palavras que sobraram.
Qualquer coisa do que desapareceu
continuou nas margens, nos talos
no atalho aberto a talhe de foice
no caminho de rato.
Grato por toda sua poesia, Armando, em seus livros que agora contemplo como devoto nas prateleiras da estante, esses passadiços horizontais em que se guardam dorsos verticais de tempo. “O pensamento pesa / tanto quanto o corpo” com sua ausência.