Foto: Lüfti Özkök, 1961
A poesia do romeno Paul Celan é marcada pelo trauma do Holocausto. Judeu nascido em uma cidade que hoje pertence à Ucrânia, Tchernivtsi, seus pais foram deportados para um campo de concentração, onde morreram, e ele preso na Romênia em 1941, onde ficou até 1944, quando as tropas soviéticas desmontaram as imensas cadeias.
O poeta passou a carregar o que se chamava “culpa do sobrevivente”, a “condenação” por ter escapado, viver com as lembranças dos horrores e testemunhado a morte de milhares. Escrever era o exercício de sublimação da alma estilhaçada, em eterna solidão com os fantasmas, pois, como disse em um verso de Cinzas, “Ninguém / testemunha pelo / testemunho”.
Fuga da morte é o poema que mais o identifica com o pretérito atormentado. Escrito em alemão, como toda sua obra, foi publicado em seu primeiro livro, Papoula e memória, em 1948. Paul Celan tinha se mudado para Paris, onde concluiu os cursos de filologia e literatura, iniciados em Bucareste, tornou-se professor universitário, casou com uma artista gráfica, Gisèle Lestrange (1927-1991), e em 1955 teve um filho, Eric Celan, autor de um livro sobre a mãe.
Com longos versos sem pontuação, o poema é de uma grandeza comovente pelo enlevo de imagens translatícias, menções a personagens lendárias e analogias doloridas. São poucos os livros de Celan traduzidos no Brasil. Neste sábado vespertino de lembrança, destaco alguns trechos do citado poema, publicado na coletânea Cristal (Editora Iluminuras, 1999):
- “Leite preto da manhã nós te bebemos de madrugada”, referindo-se à fumaça dos crematórios;
- “quando escurece à Alemanha teus cabelos de ouro Margarida”, em alusão à jovem que na obra de Goethe seduz Fausto com joias materializadas pelo demônio;
- “nós cavamos uma cova nos ares lá não aperta”, sobre os mortos que dos fornos subiam aos céus e os jogados em covas coletivas.
O título do poema indica uma curiosa similaridade estrutural. As seis estrofes dispõem o ritmo de uma fuga, o estilo musical barroco. Um verso se anuncia como uma voz, que se remete mais à frente sobre outro verso e se encontram mais adiante com outros versos, formando vozes de um coro sobre o mesmo tema. As vozes de todos nos campos de concentração sob o mesmo destino.
Hoje, 104 anos de nascimento de Paul Celan.
Ele tinha 49 anos quando mergulhou para sempre nas águas do Rio Sena. Como apagando-se dos crematórios.