segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

um por todos, todos por um


“Isto é Comboio. Outras coisas serão igualmente Comboio, se igualmente forem concebidas no âmago da arte, atentas à prática da vida. Não a arte modular conceitual, nem à vida essencial e exposta, mas as duas, vida e arte, ambas e totalmente ilimitadas como a própria concepção artística. Isto é Comboio. E outras coisas poderão ser Comboio se, em si, não encerrarem um sentido limitado e por assim ser confirmarem o anseio dos que, nesse instante histórico, preveem o desejo nacional da libertação da palavra e a quebra das grades que encarceram o pensamento.”
- Editorial do número experimental de Comboio Vida & Arte, revista coletiva literária, lançada em Fortaleza, no congestionado e esperançoso 1982.
O coletivo de jovens poetas, artistas plásticos, fotógrafos, e tantos mais resistentes sonhadores, nos reuníamos onde podíamos, das salas dos diretórios da universidade às calçadas e mesas de bares para traçar planos de voos. E assim, nos dividíamos em tarefas num só abraço: conselho editorial, arte-finalistas, finanças, divulgação. Ninguém soltava a mão de ninguém.
O escritor e professor de literatura Kelsen Bravos está fazendo escavações desse período instigante da literatura produzida no Ceará. Uma arqueologia afetiva e necessária.
No vídeo abaixo, o meu poema Armadura, que foi muito tempo depois publicado no livro Poesia provisória (Editora Radiadora).
 

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

luz dos olhos teus



Santa Luzia iluminava

a minha infância que dormia.
Nas manhãs quentes do interior:
o facho de luz vindo da telha quebrada
(o menino na rede,
a parede azulada
a cenografia do quarto
:
o enquadramento que me guardava
no passado
que vi do futuro).
A jovem siciliana que minha tia-avó trouxe da feira
protegia meus olhos que acordavam
focava sua luz neorrealista
no quintal em mim
para o dia que começava
no sertão sem fim.
Cada manhã abençoada
com a oferenda do par de olhos na bandeja.
Casa desfeita
parentes idos
santa nas retinas.
Na parede azulada,
esse recorte é o quadro que brilha mais
no meu cinema paradiso.
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Trecho do meu livro Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
13 de dezembro, dia de Santa Luzia. 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

selo


e o grude de casa nos dedos colando os sonhos

e a goma arábica nos dedos unindo as distâncias
- Trecho do meu livro Trem da memória
Editora Radiadora, 2022
Disponível na 37ª Feira do Livro de Brasília
Estande Celeiro Literário Brasiliense
24/11 a 3/12

 

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

pretérito

´
Foto: Ismar Lemes de Abreu

Do lado fronteiriço do pai
meu avô joão
com um canivete esculpia palitos para os dentes
com lascas do cercado trazidas do curral
onde o boi mugia no final da tarde
a tarde que intendia o alpendre
o alpendre que estendia meu olhar
o meu olhar que entendia meu avô
e os fiapos de madeira pelo chão
e as réstias da tarde pelo vão
e os palitos no colo do avô joão.
Entre o velho e o menino:
os palitos,
a tarde
e o coração.
Trecho do meu livro Trem da memória
Editora Radiadora, 2022
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado Viana
Disponível na 37ª Feira do Livro de Brasília
Estande Celeiro Literário Brasiliense
24/11 a 3/12

 

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

o trem da minha vida


Trem da memória, de Nirton Venancio (Editora Radiadora, 2022), é uma viagem sensorial, sinestésica, desperta muitas sensações. Embarca-se na viagem do Nirton menino e viramos meninos também. A composição poética, do ponto de vista da estrutura, é desordenada no sentido de que ela não precisa cumprir versificação. E assim, as palavras dançam, brincam. Percorrem linhas horizontais e verticais. O trem parece que quase descarrilha em algumas páginas, sai dos trilhos várias vezes em alguns trechos, e é quando a gente mais viaja!
Um cenário em cada estação, um episódio da família, da vizinhança, fatos da memória, são narrados como uma sequência de filmes que passaram pela cabeça do autor e pela do leitor, porque vamos construindo um filme também.
E o trem vai seguindo, tomando o rumo e prumo no final. Ou não, porque nas últimas páginas o trem que trouxe o menino do interior “chegou à estação João Felipe”, na capital, “e continua nos trilhos de minha vida”. “O que escrevo são incompletudes”, avisa o poeta.
Faz tempo que não caio de encantos por uma poesia que foge muito ao estilo do que tenho lido.
- Meire Viana, poeta, professora de literatura (Fortaleza)
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal, e Prêmio Literário Biblioteca Nacional.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br


 

sábado, 9 de setembro de 2023

quando o poema ganha outra dimensão


O vento forte da vida nos mantém nessa praia lírica da amizade, do afeto, da delicadeza, querida Mona Gadelha, desde tanto mar dentro de nós. Meu coração abraça o seu. Amores que estendem os braços.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

um trem na praia



Os olhos pequenos
(bilas que brilhavam
nos cantos da casa)
vasculhavam (também) os telhados
donde vazava o sol
e quando no negrume
as estrelas sobravam:
e
caiam
lentas
em
minha
rede
de
brim....
Versos de Trem da memória (Editora Radiadora, 2022) lidos literalmente ao balanço de uma rede, em frente ao marzão cearense da Praia da Baleia.
O colo, o coração, o afeto da amiga Meire Viana: mais uma estação.
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023, IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal, e Prêmio Literário Biblioteca Nacional.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

paredes da memória


A cidade ontem era outra
foi crateús
quando volto crescido
(no expresso rápido do zé arteiro)
e procuro a asa que fui
na casa que foi:
fazer dessa casa
os mesmos tijolos de antes
(...)
A casa
sempre foi poema.
Cada dia,
um verso
cada filho,
poeta.
(...)
Se não trago o menino de volta,
alcanço o homem e sua revolta.

- Trechos de Trem da memória (Editora Radiadora, 2022)

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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023, IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal, e Prêmio Literário Biblioteca Nacional.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br


 

segunda-feira, 31 de julho de 2023

incompletudes da memória


Trem da memória, de Nirton Venancio (Editora Radiadora 2022), sinto-o como escrita pulsátil. Cheio de vida, cada palavra pulsando em cada verso projeta um caminho (imperfeito, porquanto memória) que é, a um só tempo, procura e encontro, escavação, via passado, e edificação, por ele, para o agora que pode ser hoje no momento do depois. O "trem" proposto no título é de uma felicidade tão grande, enquanto expressividade de ideia, que, ao lê-lo, somos levados a saber estarmos diante de uma escrita que se teceu como movimento e que, por isso, nos faz trafegar por trilhos, ligando tempos de ontem aos tempos de agora. Via memória.
A cada verso de cada página, nós, leitores, nos deparamos com um “cascaviar” poético intenso e desafiador. Nesse processo, o eu lírico declara, já próximo do final da escrita feita:
O que escrevo são incompletudes:
há sempre quem lembro
e volto a sua casa
peço água e pergunto se sabe de mim
- o neto da costureira, o filho do bodegueiro.
Há sempre quem deslembro
e bate a minha porta
nada pede e pergunta se conhece quem foi
- o pai de lourim, o avô de fransquim.
Incertezas. Sim, o lidar com a memória causa o encontro com questões nem sempre possíveis de serem respondidas.
- Trecho do artigo Poesia que se eterniza, de Chico Araujo, poeta, professor do Centro Universitário Christus, publicado no jornal O Povo, Fortaleza, 23/6/2023
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa e IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br

sexta-feira, 14 de julho de 2023

o azul da memória


 Agora

nas páginas deste livro
o poeta pergunta
onde andará a cor azul
que se não era azul dos meus olhos miúdos
era da tarde
do dia
e da noite com sua toalha de linho
e suas estrelas de papel.

De tudo era azul
o que de passado guardo avante nos cadernos
na arquitetura das primeiras letras
caligrafia que anunciava um poema
e no silêncio do menino curioso
personagem que descrevia uma cena
às vezes de riso pequeno
devagar sempre divagando
com os brinquedos traçados pela mão do pai.

Ah, meu pai!
O pêndulo de minhas pernas
em sua cacunda
caminhando do casarão
à casa pequena sem rotunda
o menino ainda sem irmãos.

- Fragmento de Trem da memória, Editora Radiadora, 2022

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O livro concorre ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal, 65º Prêmio Jabuti e Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br

sábado, 1 de julho de 2023

insumos da memória



Não foi o deus do alto da matriz
quem deu asas a minha imaginação
nem foi o padre Bomfim
(com sua mão branca de pelos escuros
que me obrigavam a beijar
quando ele apontava no começo da rua)
muito menos o padre Irismar
(com seu rosto largo de pele vermelha
que me abrigava o olhar
quando desapontava no fim da rua)
não foram eles
a quem nunca deixei meus pecados
atravessarem as treliças do confessionário.
Pecados: pecados: pecados:
os seios
das tias de perto
que o menino via
refletidos no espelho do provador
as coxas
das cutruvias de longe
que o menino ouvia
espelhadas no reflexo dos homens
e mentia que a culpa-minha-máxima-culpa
era ter fabulado para a avó
e isso não se faz
seja a última vez
e tomem intermináveis
três pais-nossos deles
três ave-marias minhas
:
ato de contrição cabisbaixo
genuflexo
postulado
em frente aos gessos santificados
e seus olhinhos punitivos.
Não, não foram eles
seres comuns de batinas pretas
atravessadores de minha fé
não foram
foram as mãos dadas com Drummond
as folhas finas da Seleções
as curiosidades do Capivarol
foram as fitas do cine Poty
as canções da radiadora
a Hora do Brasil nas válvulas do ABC
foram as notícias do tio da capital
as conversas na calçada alta
os trancosos da prima gorda
foi o olhar sem fim de tanto imaginar
que me deu asas
sobre os telhados
os algodões
as carnaúbas
e me fez ver o mar.
- Fragmento de Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br 

domingo, 25 de junho de 2023

autobiografia poética


luz da lanterna mágica por trás de todos
mostrando na parede de cal
o mundo colorido em preto e branco
:
a
cachoeira
que
humberto
mauro
me
banhou
quando
cresci
:
24 quadrinhos por segundo
movimentavam em minhas retinas
loone ranger
e eu cavaleiro solitário
igualmente tonto
tim holt
meu primeiro caubói
do tempo das diligências
tarzan
que eu não sabia pronunciar
nem nadar como ‘jonivesmule’
carlitos
eu garoto em sua ribalta
órfão em minha estrada.
Eles se recolhiam na escuridão da cabine
quando as luzes acendiam e o vento apagava
O olhar oblíquo do menino imaginava-os
quietos
cansados
sagrados
nos rolos dentro das latas dentro de mim:
35mm de extensão em meu coração.
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Trem da memória, de Nirton Venancio (Editora Radiadora, 2022), é uma poética transida de lembranças, como num caleidoscópio, ou melhor, num cinematógrafo, ou lanterna mágica, emendando na coladeira do tempo imagens esparsas que vão costurando uma narrativa testemunhada pelo poeta.
Ele opta pela simplicidade – a mesma encontrada nos pequenos vilarejos do Brasil - que nos remete aos poemas inaugurais dos primeiros dos nossos modernistas. Sem os artifícios gongóricos da Geração de 45, que reabriu as portas do Parnaso para suas Medusas e Apolos invadirem novamente a nossa literatura.
Esse trem poético de Nirton Venancio não para em nenhuma estação. Vai recolhendo da poesia brasileira e do cinema as referências que o seu inconsciente erudito e sensível sopra no seu ouvido. E retira de seu baú as joias de sua coroa particular e as expõe e vai declinando sua história – como um filme, uma autobiografia em forma de relato.
- Luiz Carlos Lacerda, cineasta e poeta (Rio de Janeiro)
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br 

domingo, 11 de junho de 2023

asas



Tirem-me a roupa
o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
que criei pra mim
tirem-me o domingo
a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
que criei pra mim
tirem-me os lábios
o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
que criei pra mim
- Poema do meu livro Poesia provisória, publicado pela Editora Radiadora, 2019.
- Musicado e interpretado por Rubi, São Paulo, 2020. 

sábado, 10 de junho de 2023

a rua da memória

Foto ©Raphael Lucas

Da janela olhei debruçado
a história explodindo na rua firmino rosa:
os disparos no presidente em dallas
os tanques de 64 vindo de minas
dom fragoso chegando da paraíba
:
manchetes do mundo no beco da província
e o menino guardando tudo
para o poema no futuro do presente:
- um take de oliver stone
- um arquivo de sílvio tendler
- um frame de de sica.
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Onde se inscrevem as cidades, os lugares? No maquinário ensaiado de ruas, sempre a se complementar (e a faltar sempre um pedaço pra amanhã) e alicerçar dia a dia uma nova vista por seus tijolos e sonhos empilhados? Ou sob as reentrâncias de vivências da égide da memória, marcadas no abstrato e solo fértil da carne entre suas estradas de veias, artérias e nervos?
Trem da memória (Editora Radiadora, 2022) inicia-se como um plano-sequência, em mais um filme dirigido por Nirton Venancio, e segue e segue e segue num só fôlego a conversar pelo desbravar de ruas e outras reentrâncias que pulsam da memória marcadas em concreto e abstrato do que o menino de Crateús guardou para si de tantos e tantas.
Venancio, em seu longo poema, mergulha ou descarrilha seu trilhar por sua Crateús e sua Fortaleza, afirmando um tanto dessas ruas e experiências cartografadas no desnudar de suas verdades e encontros (alguns, por vir), numa costura embebida em encontros de-si, vezes sozinho, vezes por tantos.
Mailson Furtado, poeta
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br

quarta-feira, 7 de junho de 2023

um trecho da memória

m Público
Do lado fronteiriço do pai
meu avô joão
com um canivete esculpia palitos para os dentes
com lascas do cercado trazidas do curral
onde o boi mugia no final da tarde
a tarde que intendia o alpendre
o alpendre que estendia meu olhar
o meu olhar que entendia meu avô
e os fiapos de madeira pelo chão
e as réstias da tarde pelo vão
e os palitos no colo do avô joão.
Entre o velho e o menino:
os palitos,
a tarde
e o coração.
Trem da memória, de Nirton Venancio (Editora Radiadora, 2022), é poesia de elevada qualidade, que emana um perfume do melhor memorialismo de Drummond, sem abrir mão de um estilo pessoal já inconfundível.
O curioso, e que confere ao grande poema uma força lírica extraordinária, é que, muito embora vazado numa linguagem poética de corte clássico, as imagens não se derramam com sentimentalismos afetados... Há uma precisão, um rigor na composição do texto que lembra João Cabral, ecoa Drummond e reedita a leveza poética de Manuel Bandeira. Só um grande poeta o faria num mesmo poema, e o autor o faz com maestria! Sem deixar de ser original, frise-se!
Por último, impressiona o domínio da carpintaria poemática, a estruturação do texto enquanto 'coisa produzida', enquanto forma, enquanto matéria artística!
- Alder Teixeira, professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem, UECE e IFCE
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br


 

sábado, 27 de maio de 2023

apenas uma parte do Trem da Memória


Partir voluntariamente é doce: o exílio ė amargo e uma chaga que não fecha nunca. O cearense Nirton Venancio é um exilado que já viveu 3/4 de sua vida e essa ferida não sara.
A vida, o estudo e a arte - apesar do trauma do exílio - foram formando Nirton um cidadão, um gentleman, um humanista, um ser humilde, um ente sensível, acima de tudo. Como poeta, é um brunidor: trabalha os poemas até fazer brilhar o coração das palavras.
Para sorte minha, Nirton, aqui e acolá, à surdina, me enviava pedaços dos originais de Trem da memória (Editora Radiadora, 2022), que vinha escrevendo há 30 anos. Aqueles textos me deixavam encantado. E para maior felicidade minha, convidou-me para o prefácio. Assim o fiz, como lá está.
Para quem ainda não viu o livro, nem teve o prazer sensitivo de cheirar suas folhas, vou aqui dar um spoiler, em prosa, do que Nirton escreveu maravilhosamente em 76 páginas inteiriças e em belíssima poesia.
A história é assim: o pai de poeta, um bodegueiro conceituado de Crateús, interior do Ceará, ativista político, que fazia reuniões clandestinas contra a Ditadura Militar de 1964, perseguido pelo Golpe, tem de deixar sua cidade às pressas para se esconder no formigueiro humano de Fortaleza.
Por conta disso, o menino Nirton e sua irmã pequena tiveram que ficar sob os cuidados da avó e tias-avós. Até que numa madrugada fria foram acordados às pressas por uma delas para irem à estação onde o trem esperava. Iriam juntar-se a seus pais na capital, de onde só sabia do mar por ouvir dizer, por imaginar.
Poucos anos depois, Nirton retorna à Crateús em busca do passado que não encontra nas interrogações que faz: “peço água e pergunto se sabe de mim / o neto da costureira, o filho do bodegueiro.”. Só a indiferença responde.
Ninguém se interessava pelo passado de um menino que brincara em frente ao casarão avoengo (“Tudo foi tão de repente / diante dos meus olhos / que não houve tempo / para retornar ao corpo do menino / que brincava na calçada”); que comera com sua irmã Bibia as hóstias fabricadas numa casa para serem consagradas na Igreja Matriz (“O rei dos reis nu em nosso estômago / e os farelos pelo chão / sem patena / sem novena”); não sabiam do menino que não perdia uma sessão de domingo do cine Poty (“como disseram que caminhava assim / o meu bisavô / de bengala e chapéu para a tela muda”) e que levava para trocar as revistas de bang bang e apostar figurinhas na calçada do cinema (“o suor vespertino nas axilas / molhava a máscara do Zorro / nas páginas do gibi”); muito menos de um menino que tomava banho nu no rio ("onde as águas são barrentas e as lavadeiras tristes"), deixando o calção em cima da pedra (“longe do corpo / e dentro deste o mesmo coração / ao sol”).
Quem queria saber? "A cidade ontem era outra / foi Crateús / quando volto crescido / no expresso rápido do zé arteiro / e procuro a asa que fui / na casa que foi", diz o poeta, num lamento de saudade.
O menino crescido volta à Fortaleza, pois, como o autor mesmo confessa em sua saga que "foi lá / onde o menino se fez adolescente (...) que o jovem se fez adulto (...) onde as vogais do interior / encontraram as consoantes das ruas”. Foi lá, nas cadeiras do colégio Liceu e dos cines Moderno, Diogo e São Luiz, que o intelectual se fez poeta e cineasta.
Trem da memória não é apenas aquele trem que trouxe Nirton pela primeira vez à cidade grande, senão um utilitário sentimental de que ele se vale para retornar, quantas vezes quiser, ao seu chão sagrado, em busca das estrelas pelas frestas das telhas (“e / caíam / lentas / em / minha / rede / de / brim...”); dos “personagens desse mundo lá de trás”; ler, como da primeira vez, o poema de “mãos dadas com Drummond”, que lhe fez descobrir o mundo.
O livro de Nirton Venancio é uma medula emotiva que acelera e sobe e desce e range em seu peito todas as noites quando vai dormir, partindo o homem em dois e o poeta em tantos…
Leiam!
- Valdi Ferreira Lima, poeta (Sobral, CE)
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O livro concorre ao Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br