quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

entre o céu e o mar


Santa Cruz Cabrália, Bahia. Numa rua comprida, ainda de casas rústicas, no alto diante da imensidão do mar, vi uma senhora num banquinho. Fazia sombra e silêncio. Dei bom dia e me sentei ao seu lado, no chão, numa confortável sensação de que ela me convidara.
- Bom dia. – Respondeu, sem tirar os olhos miúdos do mar.
Um lenço branco cobria-lhe os cabelos. O rosto tostado de existência. As mãos juntas, às vezes tecendo os dedos, desfazendo nós invisíveis. Ao longo dos braços, afluentes de sua vida correndo nas veias em relevo sob a pele. Usava blusa de um clube. O presente vestindo o pretérito.
Continuamos olhando o mar. Bem longe um avião riscava o azul. Sem perceber, rompi o silêncio, como romperia o som aquele pontinho no céu. Perguntei-lhe se já viajou de avião.
Ouvi uma respirada esguia e alongada. A resposta noutra velocidade:
- Não, meu filho. Não é da minha natureza.
Uma pausa. Continuou.
- Avião com pouco já tá aqui no chão, com pouco já sobe, quando a gente 'oia', já tá nesse mundo de Deus. Viajar de avião tá difícil... no chão viajo de qualquer coisa.
Procurei o avião e tinha sumido atrás de uma nuvem.
- E o mar?
Ela firmou mais o infinito a sua frente. Pela primeira vez girava a cabeça, lentamente, medindo a latitude das ondas. Advertiu-me:
- Quando você entrar no mar, você vai andando, andando... maré seca... que quando você 'oiá' pra trás onde você foi daqui pra lá, e ver a água espumando, espumando... pode sair! Pode sair que na mesma hora vai tudo embora!
A conversa fluiu, como a água lá embaixo na areia, indo e vindo.
Chamava-se Don’Ana, tinha 90 anos, viúva. O marido foi pescador. Morava com uma irmã, dez anos mais nova. Os filhos em Salvador, os netos no meio do mundo.
Era quase almoço quando me levantei, me despedi e saí. Poucos passos e voltei. Perguntei se podia fazer uma foto. Assentiu com a cabeça.
Tinha voltado ao silêncio sobre o mar.