Nirton Venancio
(Os poemas aqui publicados estão registrados na Biblioteca Nacional. Podem ser reproduzidos desde que mencionados a fonte e o autor)
terça-feira, 12 de novembro de 2024
a última quimera
sexta-feira, 18 de outubro de 2024
o que escrevo me entrega
segunda-feira, 14 de outubro de 2024
velas da memória
O
escritor e engenheiro mecânico naval inglês William McFree (1881-1966), que se
dedicava a pensar viagens e oceanos em seus livros, condicionava que "O mundo não está interessado nas
tempestades que você encontrou. Querem saber se trouxe o navio”. Lembrei-me
dessa máxima ao terminar a leitura de Velas
náufragas (Editora Penalux, 2019), do poeta piauiense, e agora também
brasiliense, Diego Mendes Sousa.
Dividido
em Opus e seus cantos e líricas, o livro é de uma preciosidade narrativa
encantadora, de fôlego único pelas águas e costas de cada verso. Há uma
condução interna e estética de movimentos das marés nesse memorial litorâneo e
barroco. Diego constrói no longo poema, na estrutura mítica de uma caravela, o
seu épico íntimo de marinheiro poético em sua natal Parnaíba, onde o Delta é o
único em mar aberto para as Américas. Os versos de seus olhares iniciais foram
quando o autor tinha “a idade eternal de
Castro Alves”, como aponta no primeiro poema, Seres aladinos, e tem ele a precocidade de talento do seu
conterrâneo Mário Faustino.
“Peixes, / Caranguejos, / Cavalos-Marinhos,
Camarões / Tartarugas, Siris”, “Carnaúbas / Coqueiros, Cajueiros, Pedras, /
Ventos, Mares, Mangues, Lagoas, Rios, Xananas”, toda paisagem de alma litorânea habita a vida do poeta e
sua infância que se espalha pelas páginas molhando os pés do leitor. Todos
esses seres, vistas e horizontes que Diego grafa em maiúsculas, dão a
importância merecida dos nomes próprios, a mesma referência e reverência a
Evandro Lins e Silva, Assis Brasil, Alberto Silva e dezenas de outros citados
pela devoção do autor. O coração do poeta “é
uma inscrição / precisa ao evocar os seres aladinos”.
Mas
é no arquétipo dos caranguejos, dos siris, das lagostas, que Diego atesta e
solidifica “o amor sublimado
predestinado” do poeta nas águas barrentas e seus afluentes de inspiração.
Foram esses pequenos seres de carapaça dura que “ensinaram-me a nadar / na solidão dos dias emirados sob as águas”,
designa o autor na sua anatomia existencial. Todos diante do “horizonte fascinante” entre o rio
Igaraçu e a Serra da Ibiapaba.
Assim
como os navegadores antanhos Nicolau de Rezende e Gabriel Soares de Sousa
adentraram o delta, o poeta legitima e destemidamente palmilha “arcaicos tombos imemorais / a sina
destina-se ao fim / de tudo:”, o filho desvanecido que é de seu chão
sagrado e sua poesia vivendo “da espinha
dos peixes”, “do sal privilegiado dos
camarões crescidos” e do “batuque do
bumba-meu-boi” que por lá os povos inventaram e dançam. “Eita boi, / boi... Eita boi, boi”, eita poeta “que vive do seu / sopro de mar” e ventos
das dunas.
Se
“O amor é como um chão de neve também
horizontal”, Diego Mendes Sousa edificou com os alicerces de seu coração a
cidade imaginária Altaíba, geografia afetiva onde somente ele reside ao lado do
“amor transcendido dos / mangueizais
femininos da Altair”. O poeta sedimenta em sua alma litorânea um burgo
muito mais distinto do que Pasárgada, onde Bandeira era amigo do rei e
escolheria uma mulher; urbe mais eterna que Itabira que se tornou apenas uma
fotografia na parede e como doía em Drummond; aldeia muito mais polida do que
Macondo, onde García Márquez viveu sua solidão centenária. A cidade do poeta é
conjugação no indicativo presente, “atmosférico
/ e intensamente marítimo”; está em Parnaíba como está no mundo, está em
Altair como está em Diego.
O poema
no livro não acaba nunca porque o autor volta sempre ao “coração dos mangues”. Meu texto não termina aqui porque continuo
içando velas onde me encontro ao auscultar o “coração costeiro” do poeta.
Ao
contrário do que sentenciou William McFree, Diego Mendes Sousa trouxe o navio e
contou as tempestades que enfrentou. Caranguejos, siris, tartaruguinhas e tudo
mais, agrupados na praia para ouvir as histórias de além-mar.
quarta-feira, 9 de outubro de 2024
o sopro da poesia
terça-feira, 8 de outubro de 2024
sobre viver
sábado, 5 de outubro de 2024
meus Franciscos
domingo, 29 de setembro de 2024
domingo com Machado
Usando uma linguagem mais apropriada à escrita do século 19, neste domingo, 29 de setembro, completam 116 anos do passamento de Machado de Assis.
De sua vasta e monumental literatura, lembrei-me do conto Uns braços, inserido na coletânea Várias histórias, originalmente publicada em 1896. Assim como os outros quinze que compõem o volume, são contos que Machado publicou de 1984 a 1891 no jornal carioca Gazeta de Notícias. Veio-me à lembrança porque o núcleo do enredo se desenvolve num domingo.
O conto narra as agruras e encantamento do adolescente Inácio, de “quinze anos feitos e bem feitos”, por Dona Severina, com “vinte e sete anos floridos e sólidos”, esposa de seu patrão, o advogado Borges, sempre zangado e grosseiro, que trata o rapaz com rispidez quando não faz o serviço do seu jeito e a tempo. Inácio fora trabalhar ajudante e escrevente por recomendação do pai, na esperança que o filho fizesse carreira e chegasse ao foro, “porque lhe parecia que os procuradores de causa ganhavam muito”.
Morando num quarto nos fundos da casa do casal, Inácio por várias vezes ensaiou ir embora, cansado dos impropérios do patrão. Sempre desistia da ideia porque estava confuso e apaixonado por Dona Severina, mais exatamente pelos delicados braços que ela deixava desnudos, costume ousado para a época. “Alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa à primeira flor”, analisa Machado o deslumbramento do rapaz.
Inácio só via Dona Severina três vezes ao dia, à mesa durante as refeições. Ela começou a notar os olhares no par de braços, sempre à mostra “meio palmo abaixo do ombro”. O jovem tem cuidado, dissimula o gesto, pois “Nunca ele pôs os olhos (...) que não esquecesse de si e de tudo”. Dona Severina aos poucos encanta-se também com aquele fascínio, percebe “que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos limiares sociais”. Numa noite, durante o jantar, viu “que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço”, boca para ser “afagada e beijada”. “Uma criança!”, reage a mulher, refutando o pensamento que “abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.”
“Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousa”, compara Machado ao colocar Dona Severina cedida à “tentação diabólica”. Uma noite ela vai ao quarto do rapaz. Adentra silenciosamente e o encontra adormecido na rede, “a cabeça inclinada, o braço caído” e um folheto que foi chão quando o sono bateu. Dona Severina achou-o “muito mais bonito que acordado”. Aproxima-se, pega-lhe as mãos, e inclinando-se, “abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca”. O rapaz não acorda. Ela levanta-se, foge à porta, “vexada e medrosa”.
Teria Inácio sonhado aquele encontro secreto e ousado? Ou “Dona Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz”? A genialidade de Machado de Assis minudencia uma narrativa que deixa o leitor com mesma pergunta se Bentinho foi ou não traído por Capitu, em Dom Casmurro. É igualmente um dos mais belos e criativos questionamentos da literatura brasileira. A ambiguidade que mostra o ser humano emaranhado nas emoções que misturam o real e o imaginário.
Inácio, no dia seguinte, acha que sonhou naquela noite. Era domingo, ele nunca esqueceu. “O dia estava lindíssimo. Não era um domingo cristão, era um imenso domingo universal”.