sábado, 23 de novembro de 2024

fuga e mergulho do poeta


Foto: Lüfti Özkök, 1961


A poesia do romeno Paul Celan é marcada pelo trauma do Holocausto. Judeu nascido em uma cidade que hoje pertence à Ucrânia, Tchernivtsi, seus pais foram deportados para um campo de concentração, onde morreram, e ele preso na Romênia em 1941, onde ficou até 1944, quando as tropas soviéticas desmontaram as imensas cadeias.

O poeta passou a carregar o que se chamava “culpa do sobrevivente”, a “condenação” por ter escapado, viver com as lembranças dos horrores e testemunhado a morte de milhares. Escrever era o exercício de sublimação da alma estilhaçada, em eterna solidão com os fantasmas, pois, como disse em um verso de Cinzas, “Ninguém / testemunha pelo / testemunho”.
Fuga da morte é o poema que mais o identifica com o pretérito atormentado. Escrito em alemão, como toda sua obra, foi publicado em seu primeiro livro, Papoula e memória, em 1948. Paul Celan tinha se mudado para Paris, onde concluiu os cursos de filologia e literatura, iniciados em Bucareste, tornou-se professor universitário, casou com uma artista gráfica, Gisèle Lestrange (1927-1991), e em 1955 teve um filho, Eric Celan, autor de um livro sobre a mãe.
Com longos versos sem pontuação, o poema é de uma grandeza comovente pelo enlevo de imagens translatícias, menções a personagens lendárias e analogias doloridas. São poucos os livros de Celan traduzidos no Brasil. Neste sábado vespertino de lembrança, destaco alguns trechos do citado poema, publicado na coletânea Cristal (Editora Iluminuras, 1999):
- “Leite preto da manhã nós te bebemos de madrugada”, referindo-se à fumaça dos crematórios;
- “quando escurece à Alemanha teus cabelos de ouro Margarida”, em alusão à jovem que na obra de Goethe seduz Fausto com joias materializadas pelo demônio;
- “nós cavamos uma cova nos ares lá não aperta”, sobre os mortos que dos fornos subiam aos céus e os jogados em covas coletivas.
O título do poema indica uma curiosa similaridade estrutural. As seis estrofes dispõem o ritmo de uma fuga, o estilo musical barroco. Um verso se anuncia como uma voz, que se remete mais à frente sobre outro verso e se encontram mais adiante com outros versos, formando vozes de um coro sobre o mesmo tema. As vozes de todos nos campos de concentração sob o mesmo destino.
Hoje, 104 anos de nascimento de Paul Celan.
Ele tinha 49 anos quando mergulhou para sempre nas águas do Rio Sena. Como apagando-se dos crematórios.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

domicílio


 O meu poema, a música de Charles Wellington, o traço de André Dias.

Todos domiciliados no mesmo espaço do afeto.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

a imortalidade de Rosa

 Foto: Arquivo Público Mineiro / Acervo DIMUS – Museus Estaduais de MG

Em 1957 Guimarães Rosa se candidatou à Academia Brasileira de Letras, mas obteve apenas 10 votos. Tentou outra vez em 1963 e foi eleito por unanimidade, ocupando a vaga do gaúcho João Neves da Fontoura. Mas o escritor não tomou posse de imediato. Tinha uns medos, umas crenças, e achava que poderia se sentir mal de tanta emoção. Adiou por quatro anos.

Quando se considerou seguro, acertou com a Academia para assumir a cadeira no dia 16 de novembro de 1967. Tinha ido ao México no começo do ano representar o Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, publicou em agosto o livro de contos Tutaméia – Terceiras histórias, participou do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap, e por iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos seria indicado ao prêmio Nobel... Estava entusiasmado! Fecharia o ano empossado na Academia.
Em seu discurso, fazendo uma referência à imortalidade que o fardão consagra, disse que "...a gente morre é para provar que viveu". Uma fala com acento aforístico que caberia numa conversa de Riobaldo com seu compadre Quelemém.
Três dias depois, na manhã de um domingo, Rosa sofre um infarto em sua casa, em Copacabana, e falece, aos 59 anos. Estava sozinho, sua esposa, dona Aracy de Carvalho, tinha ido à missa.
Como pedira aos familiares, foi enterrado com seus óculos de míope. O semblante final como
Um passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?,
perguntou e definiu Drummond em um trecho do poema a ele dedicado, Um chamado João, escrito três manhãs depois da partida do amigo e publicado no jornal Correio da Manhã.
Neste dia 19 bem cedo antes do café fui à estante e folheei o exemplar de Grandes Sertões: Veredas, que li pela primeira vez, com imensa perplexidade e encanto, na época da faculdade de Letras. As páginas quase todas sublinhadas e com observações laterais – hábito de dialogar com a obra e o autor que me fez sentir cumpliciado ao saber que Pedro Nava fazia o mesmo.
57 anos hoje que Rosa provou que viveu. Tenho dessas saudades de quem nunca vi e sempre amei na intimidade da leitura.

domingo, 17 de novembro de 2024

a liberdade é uma estátua


O título desta postagem é uma fala da peça Deserto, baseada nas memórias e em fragmentos de diferentes obras de Roberto Bolaños (1953-2003). Apresentada recentemente no Festival de Teatro Cena Contemporânea, em Brasília, o monólogo na interpretação visceral e comovente de Renato Livera, aborda os últimos anos de vida do escritor chileno, diagnosticado com uma doença hepática crônica.

A primeira imagem que me veio ao ouvir a fala na contextualização cênica, foi a sequência final do filme Planeta dos macacos (Planet of the apes), de Franklin J. Schaffer, 1968.


Clássico da ficção científica, conta a história de uma tripulação espacial que depois de muito tempo hibernada na nave, pousa em um planeta parecido com a Terra, dominado por uma civilização de macacos, já no adiantado e inimaginável ano 3900. O planeta é a própria Terra, sem vestígios de seres humanos, e numa curiosa inversão, tem os símios como seres inteligentes, poderosos e bélicos.
Charlton Heston interpreta o astronauta George Taylor, sobrevivente que enfrenta a raça dos macacos falantes em busca de respostas para aquilo tudo. Heston, que já tinha sido salvador da humanidade como Moisés em Os dez mandamentos, o lendário herói espanhol em El Cid, o judeu libertário em Ben Hur, não foi à toa que a Century Fox o escalou para mais um papel de Messias-reloaded.
Depois de muito embate com os macacos, Taylor em uma fuga que extasiava a plateia, em desesperado galope à beira-mar, dá de cara com a Estátua da Liberdade, afundada parcialmente na areia, a tocha apagada em suspiro final. Uma das imagens mais impactantes da história do cinema.
O personagem ajoelha-se e sucumbe à dor. A cena resume toda a certeza que a humanidade estava ali disseminada, coagulada na mais grave desesperança. Hollywood, como fábrica mágica de sonhos e pesadelos, elipsou o apocalipse em uma cena extremamente simbólica, não somente por sabermos da cidade de New York sumida do mapa, mas de toda a população da Terra literalmente enterrada com a estátua presenteada pela França.
Naquela noite ao sair do teatro, a realidade lá fora anunciava Donald Trump como 47º presidente eleito dos Estados Unidos.
Enquanto andava sob uns discretos pingos de chuva deste novembro brasiliense, um trecho da fala de um personagem do livro O gênio e a deusa (1955), do visionário Aldous Huxley, juntou-se às minhas reflexões, perplexidades e temores, no entrelaçado encontro da peça, do filme e da realidade: “O mal da ficção é que ela faz sentido demais. Em seu estado bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas”.
Parece que assim caminha a humanidade naquela praia em direção à liberdade, que é uma estátua. 

 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

a última quimera


Em 1912 Augusto dos Anjos lançou Eu, seu único livro, que reúne 58 poemas, todos em versos rimados e numa magnífica composição de decassílabos. Mas a publicação não agradou à crítica nem à classe conservadora. A literatura brasileira estava marcada pelas escolas simbolista e parnasiana.
O poeta paraibano usou a erudição como modelo formal, mas transgrediu no conteúdo, adotando uma linguagem com vocabulário científico para expor suas angústias existenciais. Sofrimento, pessimismo, tremores noturnos, podridão moral, morte, decomposição física, eram temas que não cabiam na elegância dos saraus de lirismo comedido.
Augusto dos Anjos passou por grandes dificuldades financeiras. Formado em Direito, nunca exerceu a profissão, sobrevivia lecionando Literatura no Liceu Paraibano, em 1910. Quando tentou transferência para o Rio de Janeiro, em busca de melhores condições, o governador João Lopes Machado negou o pedido. Augusto demitiu-se e foi embora com sua esposa, Ester Fialho.
Indignado, dizia que a injustiça social era solícita em premiar os ruins, dourar as falcatruas, entronar os endinheirados e avaríssima com os honestos e os sonhadores. Com a alma atormentada, sem emprego fixo, o poeta sacrificava-se dando aulas particulares. Tinha dois filhos, muitas dívidas e poucas esperanças.
Vislumbrou uma melhora de vida quando se mudou com a família para Leopoldina, em Minas Gerais. Por influência do cunhado, foi nomeado diretor de um grupo escolar. Mas cinco meses depois adoeceu, contraiu dupla pneumonia e faleceu em 12 de novembro de 1914.
Versos íntimos, seu poema mais conhecido, é no mesmo fôlego epígrafe e lápide de seus curtos e intensos 30 anos de vida com o coração cheio de pesares. Um soneto de insólita combinação paradoxal da finitude humana.
Nesta manhã, quando cedo me veio à lembrança sua história, fui à estante - esses passadiços horizontais em que se guardam dorsos verticais do tempo - e peguei o livro para folhear poemas em homenagem íntima, solitária, marejada. Imaginei como teria sido sua despedida.
Poucos devem ter assistido ao seu enterro no Cemitério Nossa Senhora do Carmo, em Leopoldina. "Somente a Ingratidão – esta pantera – / Foi tua companheira inseparável!”.
A vastidão dos prados mineiros foi sua última quimera.
Foto: autor desconhecido, 1912, Acervo Biblioteca Brasiliana Guita, São Paulo.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

o que escrevo me entrega


Bússola, do meu livro Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019), parte 1, Explorar as tardes.
Com a primeira edição esgotada, a Editora está providenciando uma nova tiragem.
Coordenação editorial, Alan Mendonça; prefácio, Carlos Emílio Correia Lima; desenho da capa, Fausto Nilo. 


 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

velas da memória


O escritor e engenheiro mecânico naval inglês William McFree (1881-1966), que se dedicava a pensar viagens e oceanos em seus livros, condicionava que "O mundo não está interessado nas tempestades que você encontrou. Querem saber se trouxe o navio”. Lembrei-me dessa máxima ao terminar a leitura de Velas náufragas (Editora Penalux, 2019), do poeta piauiense, e agora também brasiliense, Diego Mendes Sousa.

Dividido em Opus e seus cantos e líricas, o livro é de uma preciosidade narrativa encantadora, de fôlego único pelas águas e costas de cada verso. Há uma condução interna e estética de movimentos das marés nesse memorial litorâneo e barroco. Diego constrói no longo poema, na estrutura mítica de uma caravela, o seu épico íntimo de marinheiro poético em sua natal Parnaíba, onde o Delta é o único em mar aberto para as Américas. Os versos de seus olhares iniciais foram quando o autor tinha “a idade eternal de Castro Alves”, como aponta no primeiro poema, Seres aladinos, e tem ele a precocidade de talento do seu conterrâneo Mário Faustino.

“Peixes, / Caranguejos, / Cavalos-Marinhos, Camarões / Tartarugas, Siris”, “Carnaúbas / Coqueiros, Cajueiros, Pedras, / Ventos, Mares, Mangues, Lagoas, Rios, Xananas”, toda paisagem de alma litorânea habita a vida do poeta e sua infância que se espalha pelas páginas molhando os pés do leitor. Todos esses seres, vistas e horizontes que Diego grafa em maiúsculas, dão a importância merecida dos nomes próprios, a mesma referência e reverência a Evandro Lins e Silva, Assis Brasil, Alberto Silva e dezenas de outros citados pela devoção do autor. O coração do poeta “é uma inscrição / precisa ao evocar os seres aladinos”.

Mas é no arquétipo dos caranguejos, dos siris, das lagostas, que Diego atesta e solidifica “o amor sublimado predestinado” do poeta nas águas barrentas e seus afluentes de inspiração. Foram esses pequenos seres de carapaça dura que “ensinaram-me a nadar / na solidão dos dias emirados sob as águas”, designa o autor na sua anatomia existencial. Todos diante do “horizonte fascinante” entre o rio Igaraçu e a Serra da Ibiapaba.

Assim como os navegadores antanhos Nicolau de Rezende e Gabriel Soares de Sousa adentraram o delta, o poeta legitima e destemidamente palmilha “arcaicos tombos imemorais / a sina destina-se ao fim / de tudo:”, o filho desvanecido que é de seu chão sagrado e sua poesia vivendo “da espinha dos peixes”, “do sal privilegiado dos camarões crescidos” e do “batuque do bumba-meu-boi” que por lá os povos inventaram e dançam. “Eita boi, / boi... Eita boi, boi”, eita poeta “que vive do seu / sopro de mar” e ventos das dunas.

Se “O amor é como um chão de neve também horizontal”, Diego Mendes Sousa edificou com os alicerces de seu coração a cidade imaginária Altaíba, geografia afetiva onde somente ele reside ao lado do “amor transcendido dos / mangueizais femininos da Altair”. O poeta sedimenta em sua alma litorânea um burgo muito mais distinto do que Pasárgada, onde Bandeira era amigo do rei e escolheria uma mulher; urbe mais eterna que Itabira que se tornou apenas uma fotografia na parede e como doía em Drummond; aldeia muito mais polida do que Macondo, onde García Márquez viveu sua solidão centenária. A cidade do poeta é conjugação no indicativo presente, “atmosférico / e intensamente marítimo”; está em Parnaíba como está no mundo, está em Altair como está em Diego.

O poema no livro não acaba nunca porque o autor volta sempre ao “coração dos mangues”. Meu texto não termina aqui porque continuo içando velas onde me encontro ao auscultar o “coração costeiro” do poeta.

Ao contrário do que sentenciou William McFree, Diego Mendes Sousa trouxe o navio e contou as tempestades que enfrentou. Caranguejos, siris, tartaruguinhas e tudo mais, agrupados na praia para ouvir as histórias de além-mar.