Partir voluntariamente é doce: o exílio ė amargo e uma chaga que não fecha nunca. O cearense Nirton Venancio é um exilado que já viveu 3/4 de sua vida e essa ferida não sara.
A vida, o estudo e a arte - apesar do trauma do exílio - foram formando Nirton um cidadão, um gentleman, um humanista, um ser humilde, um ente sensível, acima de tudo. Como poeta, é um brunidor: trabalha os poemas até fazer brilhar o coração das palavras.
Para quem ainda não viu o livro, nem teve o prazer sensitivo de cheirar suas folhas, vou aqui dar um spoiler, em prosa, do que Nirton escreveu maravilhosamente em 76 páginas inteiriças e em belíssima poesia.
A história é assim: o pai de poeta, um bodegueiro conceituado de Crateús, interior do Ceará, ativista político, que fazia reuniões clandestinas contra a Ditadura Militar de 1964, perseguido pelo Golpe, tem de deixar sua cidade às pressas para se esconder no formigueiro humano de Fortaleza.
Por conta disso, o menino Nirton e sua irmã pequena tiveram que ficar sob os cuidados da avó e tias-avós. Até que numa madrugada fria foram acordados às pressas por uma delas para irem à estação onde o trem esperava. Iriam juntar-se a seus pais na capital, de onde só sabia do mar por ouvir dizer, por imaginar.
Poucos anos depois, Nirton retorna à Crateús em busca do passado que não encontra nas interrogações que faz: “peço água e pergunto se sabe de mim / o neto da costureira, o filho do bodegueiro.”. Só a indiferença responde.
Ninguém se interessava pelo passado de um menino que brincara em frente ao casarão avoengo (“Tudo foi tão de repente / diante dos meus olhos / que não houve tempo / para retornar ao corpo do menino / que brincava na calçada”); que comera com sua irmã Bibia as hóstias fabricadas numa casa para serem consagradas na Igreja Matriz (“O rei dos reis nu em nosso estômago / e os farelos pelo chão / sem patena / sem novena”); não sabiam do menino que não perdia uma sessão de domingo do cine Poty (“como disseram que caminhava assim / o meu bisavô / de bengala e chapéu para a tela muda”) e que levava para trocar as revistas de bang bang e apostar figurinhas na calçada do cinema (“o suor vespertino nas axilas / molhava a máscara do Zorro / nas páginas do gibi”); muito menos de um menino que tomava banho nu no rio ("onde as águas são barrentas e as lavadeiras tristes"), deixando o calção em cima da pedra (“longe do corpo / e dentro deste o mesmo coração / ao sol”).
Quem queria saber? "A cidade ontem era outra / foi Crateús / quando volto crescido / no expresso rápido do zé arteiro / e procuro a asa que fui / na casa que foi", diz o poeta, num lamento de saudade.
O menino crescido volta à Fortaleza, pois, como o autor mesmo confessa em sua saga que "foi lá / onde o menino se fez adolescente (...) que o jovem se fez adulto (...) onde as vogais do interior / encontraram as consoantes das ruas”. Foi lá, nas cadeiras do colégio Liceu e dos cines Moderno, Diogo e São Luiz, que o intelectual se fez poeta e cineasta.
Trem da memória não é apenas aquele trem que trouxe Nirton pela primeira vez à cidade grande, senão um utilitário sentimental de que ele se vale para retornar, quantas vezes quiser, ao seu chão sagrado, em busca das estrelas pelas frestas das telhas (“e / caíam / lentas / em / minha / rede / de / brim...”); dos “personagens desse mundo lá de trás”; ler, como da primeira vez, o poema de “mãos dadas com Drummond”, que lhe fez descobrir o mundo.
O livro de Nirton Venancio é uma medula emotiva que acelera e sobe e desce e range em seu peito todas as noites quando vai dormir, partindo o homem em dois e o poeta em tantos…
Leiam!
- Valdi Ferreira Lima, poeta (Sobral, CE)
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O livro concorre ao Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br
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