domingo, 23 de julho de 2006

impregnados

foto Eric Alan Pritchard

Ele fechou a porta e saiu. Precisava ir embora. Não era o que ele queria: era o que precisava. Não lhe era fácil ouvir o que ouviu e ter de ir embora. Fechou a porta e saiu. Agora as palavras ficaram atrás da porta, lá dentro do quarto. E dentro dele também continuariam. “Não vou tomar banho”, disse ela. Ele ouviu e não entendeu. Ela, com o rosto virado e apoiado nas duas mãos juntas, repetiu baixinho “não vou tomar banho”, como se agora fosse somente para si. Mas ele ouviu as palavras sussurradas no dorso das mãos, ali do outro lado, ela de costas para ele, ele que fixava o olhar no teto. Desprendeu-se, virou o rosto e olhou para ela. O cabelo cobria-lhe a nuca. O olhar dele tentou desembaraçá-los e atravessar até o outro lado, ver o seu rosto, ouvir de novo o que ela falara. “Nunca mais vou tomar banho, nunca mais”, continuou ela. Esboçou um gesto de afago em seus cabelos, não para que ela virasse o rosto, o que poderia ter sido ótimo, e esta história seria diferente, mas ele não fez da intenção um gesto sequer. Voltou o rosto para o teto. “Quero ficar com seu cheiro em meu corpo”, disse ela mais uma vez, alongando-se nas palavras, e foi no momento em que ele fechou os olhos para não ficar mais uma vez fixo naquele branco do teto, naquela lâmpada apagada, naquela luz do dia que começava. Fechou os olhos e as palavras dela entraram mais fortemente em seus ouvidos. “Para sempre... quero ficar com seu cheiro pra sempre”, era quase um murmúrio, mas ele ouviu nitidamente cada palavra, ali do outro lado, com o rosto nas mãos juntas, as mãos por cima do travesseiro fino. Ele não conseguia abrir os olhos. As palavras ressoavam em sua cabeça, se estendiam lentamente lá por dentro e sumiam quando novamente as palavras voltavam, “seu cheiro em mim... pra sempre”. Abriu os olhos, decidira: precisava ir embora: não queria: precisava. Levantou-se e o ruído da cama encobriu uma talvez repetida fala. Ele se vestiu enquanto olhava para ela, ali deitada, confundida entre os panos, a brancura dos lençóis, a extensão da cama que parecia maior agora. Não podia ficar olhando-a, ou ficaria ali. Não queria ir embora: precisava. Virou-se e foi em direção à porta. Abriu lentamente, como se ela estivesse dormindo e não quisesse acordá-la. Fechou a porta e saiu. Precisava ir embora. Não era o que ele queria: era o que precisava. Não lhe era fácil ouvir o que ouviu e ter de ir embora. Fechou a porta e saiu. Agora as palavras ficaram atrás da porta, lá dentro do quarto. E dentro dele também continuariam.

(do livro “Outras prosas”)

terça-feira, 11 de julho de 2006

persona grata

foto Farrokh Chothia

Gratifica-me ver teus olhos:
pássaros castanhos
que voam longe de mim.

Gratifica-me ver teu rosto:
moldura morena
que se guarda longe de mim.

Gratifica-me ouvir tua voz:
teclas de piano
que tocam longe de mim.

Gratifica-me teu jeito de andar:
ave-elegante
que passeia longe de mim.

Gratifica-me sentir tuas mãos:
gestos de plumas
se chegassem perto de mim.

(do livro “Poesia provisória”)

quinta-feira, 6 de julho de 2006

bagagem

foto Edward Dimsdele

Dentro de mim
cabe uma cidade
outra cidade
e mais uma cidade
dentro de mim
cabe o universo
e mais o vilarejo onde nasci

meus pés
arrastam lembranças
espalham o cheiro da terra
soltam o corpo no sorriso
todas as veias
do coração
bifurcam na próxima cidade
e levam ao mesmo rio
diante do sol
abrem o meu olhar
horizontando o dia
.

(do livro “Poesia provisória”)