domingo, 28 de dezembro de 2008

esconde-esconde

foto Jean-Sebastien Monzani

Você troca tudo de lugar
esconde minhas roupas
para quando no amanhecer eu lhe procurar.


Você troca o sol pelo luar
esconde os meus beijos
para não amanhecer quando a noite acabar.


Você troca os cds de lugar
esconde os meus livros
para quando amanhecer eu me desesperar

Meu peito alcança o seu olhar.
A casa é pequena, o abraço tão largo:
eu sei onde seu coração está.

(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 27 de dezembro de 2008

lençol

foto Dominique Lefort

Cubro
o teu corpo nu
com
o meu corpo nu.

(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

luar

foto Kiriko Shirobayashi

Vislumbro uma luz sob a porta.
Ando.
Uma réstia toca a minha pele.


Esqueceram a lua acesa.

(do livro “Raios”)

sábado, 20 de dezembro de 2008

madrugada

foto Rosalina Afonso

Os poetas dormem tarde.
A poesia é que acorda cedo.

(do livro "Poesia provisória")

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

medida

foto Carlo Santis

Caberão no poema

quando
soltos,
os beijos

quando
largos,
os abraços


quando
estradas,
os passos
?


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 14 de dezembro de 2008

recorte

foto Maurício Rolo

Cada gesto posto no espaço
me subtrai (um pouco) a intimidade.

(um verso de "Postura", do livro "Poesia provisória")

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

presença

foto Lukas Lehmer

Vivo em ti
todos os momentos de mim.

(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

asas

foto Bogdar Jarocki

Tirem-me a roupa
o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
que criei pra mim


tirem-me o domingo
a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
que criei pra mim

tirem-me os lábios
o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
que criei pra mim


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 7 de dezembro de 2008

prazo

foto Mila Petrelle

Impossível
terminar o poema nos próximos dias:
falta uma vírgula aqui
aguarda um sentimento ali
avista-se uma cidade acolá.


E essas correções, dores e risos
costumam demorar
uma vida inteira...


(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

cofre

foto Sander Levini

Quando quiseres
venhas
e gires com as pontas dos dedos
o meu coração.

Encontrarás
teus segredos nos meus olhos abertos.
Guardo no peito
o íntimo
de quem se achega.

(Do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

metade

foto David Martins

O que se vê em mim
não é o todo:
escondo gestos.
O que se sabe de mim
(ainda) não é tudo:
escondo datas


Metade que nem eu mesmo sei
mais corrói do que vive e cresce:
e silenciosamente é uma doença
(e não me esquece).

 

Convivo como caça e caçador
dentro de mim:
uma hora me acho
a outra não me aceita
e sou metade do rosto desenhada
a outra metade desfeita.



(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 16 de novembro de 2008

sobre viver

Gil Vicente, nanquim sobre papel

só escaparemos se conversarmos
se sentarmos
à mesma mesa
e trocarmos olhares
como amigos
ou como sobreviventes.


(do livro “A paisagem e a distância”)

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

pronominal

foto Marin

É preciso
que nossos dedos se enlacem
sem necessariamente
que nós em nós se passem.

É preciso
que num eclipse eu desapareça
sem que lhe abandone
e quando a lua passar você me esqueça.

É preciso
que eu tenha seu prenome
sem que lhe substitua
quando assinar embaixo o seu sobrenome.

Por certo:
ninguém ama por decreto.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

linha

foto Christian Dule


Essa linha que nos separa
no meio da sala
é a mesma que estranhamente
nos enlaça
e assim como nos ameaça
nos joga no mesmo abraço.


Se você parte por um século
ou por segundos me ausento,
fica sempre do outro um pedaço
na viagem solitária
de quem segue em desalento.

(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

domicílio

foto Michael Kenna

Não me procure nesse endereço:
meu coração mudou-se.
Pouco resta do antigo inquilino.


A casa está vazia.


(do livro “Raios”)

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

regime

foto Manuel Sardinha

Tenho seus beijos
como medida.
Não ponha açúcar no café.


De doce basta a vida.


(do livro “Raios”)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

reverso

foto Bogdar Jarocki

Já que entre nós
todo o contrário é crível

não desfaça cerimônia:
volte o mais rápido impossível.

(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 23 de setembro de 2008

a paisagem e a distância (fragmento)

foto Nelson Kon

o que é uma cidade
na história de
um homem?
não se sabe ao certo
como não se explica
por que esse homem respira
e o que alimenta
tantos desejos

a cidade
(no final das contas
e das ruas)
é mistura confusa
de susto e alívio
que abraça e larga
nossa carne
como quem ama e desaparece


apesar dos desenhos
que orientam o presente
a cidade
é o mistério
sobre a cabeça dos homens
que caminham sobre passos
novos a cada desejo
grandes a cada abraço
profundos a cada vontade.

(do livro "A paisagem e a distância")

domingo, 7 de setembro de 2008

cofre

foto Pat Nickplemse

Quando quiseres
venhas
e gires com as pontas dos dedos
o meu coração.

Encontrarás
teus segredos nos meus olhos abertos.

Guardo no peito
o íntimo
de quem se achega.

(do livro "Poesia provisória")

sábado, 12 de julho de 2008

multidão

foto David Martins

Chora quem conheço.
Choram aqueles longe de mim.
Chora até você que me fez ver:


A dor não é um privilégio meu.

(do livro “Raios”)

terça-feira, 8 de julho de 2008

carinho

foto Pascal Renoux

Minha mão passeia
sobre a fertilidade de tua pele
e não existe nada mais além dessa
eternidade.
Passeia como se voasse
(se pássaro eu fosse
e asas minhas mãos lentas)


mas é vôo
tudo que o amor
nesse momento conduz ao sempre.


(do livro “Poesia provisória”)

quinta-feira, 12 de junho de 2008

namorada

foto Ashley Keynes

Hoje, como em todos os dias, eu faço um filme de amor para você. Eu escrevo um poema com as mais belas palavras que eu possa extrair do meu coração. Eu componho uma música com os melhores arranjos de flores.

Hoje, como em todos os dias, eu digo que lhe amo.

terça-feira, 3 de junho de 2008

exílio

foto Lukas Stevenson

Escrevo-te distante.
Não meu corpo tão longe do mar:
distante do oceano.

Vivo por enquanto a quilômetros de mim.
O que restou aos teus olhos
é o que mantém a lembrança
de um pouco que me definia.

Vago a olhar-me para trás
e de lá tento me alcançar de volta.

Não me perguntes o que houve.
Tão logo um lado e outro se reencontrem
passarei por tua casa.

(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 21 de maio de 2008

estima

foto Gyulis Santis

O homem é um bicho-homem
que não sabe se é um rato,

fosse o homem mesmo um rato
talvez não tivesse esse nome

posto que pode ser lobisomem
o homem não sabe o que é de fato.

Homem e rato – ambos têm fome
e comem tudo que está no mato,

quando comem, comem e somem
deixando sem fundo o chão e o prato;

mesmo não sendo um rato
o homem corre com medo da fome

como o rato corre do gato
que come o rato com medo da fome.

O homem (quem sabe...) é um passarinho
sem asas, sem bico e sem verão

que vive a vida atrás do ninho
angustiado no que chama solidão,

corre o mundo, sem parente, sem vizinho
montado no seu corpo feito alazão

carente de abraço, pão e vinho
perdido no céu, no mar e no sertão

sem saber se no incerto caminho
voa como pássaro ou avião.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

trem da memória (fragmento)

foto Mario De Biasi

Tudo foi tão de repente
diante dos meus olhos
que não houve tempo
para retornar ao corpo do menino
que brincava na calçada.

A memória viaja
- trem inútil -
e não traz as roupas
que se vestia nas tardes de domingo
e a estrada some
deixando o mundo
como um grande circo
na praça da estação.

(do livro “Trem da memória – um poema”)

quarta-feira, 26 de março de 2008

promessa

foto Mona Kuhn

Ela disse
que me amaria para o resto da vida.
Ela me disse.

Como a vida é curta.

(do livro “Raios”)

segunda-feira, 17 de março de 2008

mímica

foto Bruce Taj

Os gestos lentos das mãos
somem com as máscaras no rosto
dia
após
dia:
até nada mais restar
sobre os ossos da face.

O destino das vértebras
sabe dele o chão

e
dos pensamentos
fica nos outros
o que passou pelo coração.


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 17 de fevereiro de 2008

dados pessoais

foto Daniela Labieni

Cinqüenta e muitos quilos
de idade e fome.
Vinte e tantos e espantosos anos
que a vida pesa em mim.

Do lado esquerdo
o coração incomoda
quando inquilino
quando solitário
e se eu pudesse arrancá-lo
não o faria.

Sou o encontro de duas vogais
entre o menino que se foi
e aquele senhor que se aproxima.
O presente
é esse grito na janela
esse silêncio no quarto
à guisa de forças
para carregar esses anos e esses quilos.


(do livro “Roteiro dos pássaros remixado")

domingo, 13 de janeiro de 2008

anônimo

foto Jerry Schatzberg

Eu nunca deixo pistas dos meus pecados.
Escondo meus delitos
e deixo a condenação para a volta.
Estou muito apressado.

Eu nunca deixo atalho
para me descobrirem:
prefiro o próximo encontro
com o que encontrar próximo aos meus olhos.

Eu nunca deixo traços dos meus planos.
Deixo o resultado de tantos enganos
como pudesse ser também seu
aquilo que foi somente meu.

Não passo procuração para sentimentos
enquanto viajo para lugar desconhecido.

Este poema pode me custar a vida.
Podem me custar os amigos.
E me gostarem os inimigos.

Mas não deixarei rascunho dos meus reversos.


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 6 de janeiro de 2008

linha

foto Ryan McVay

Essa linha que nos separa
no meio da sala
é a mesma que estranhamente
nos enlaça
e assim como nos ameaça
nos joga no mesmo abraço.

Se você parte por um século
ou por segundos me ausento,
fica sempre do outro um pedaço
na viagem solitária
de quem se perdeu
e segue em desalento.

(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

metade



O que se vê em mim
não é o todo:
escondo gestos.
O que se sabe de mim
(ainda) não é tudo:
escondo datas
Metade que nem eu mesmo sei
mais corrói do que vive e cresce:
e silenciosamente é uma doença
(e não me esquece).

Convivo como caça e caçador
dentro de mim:
uma hora me acho
a outra não me aceita
e sou metade do rosto desenhada
a outra metade desfeita.

(do livro "Poesia provisória")