Do vasto cancioneiro brasileiro, minha mãe gostava muito de tantas músicas e sempre cantarolava nos afazeres domésticos, como uma trilha para cada gesto cotidiano. Mesmo com a voz baixa, docemente afinada, como estivesse cantando para ela mesma, ouvíamos na altura de nossos corações.
“Alguém me disse / que tu andas novamente / de novo caso / de novo amor / toda contente...”, entoava enquanto estendia uma toalha sobre a mesa, arrumava os pratos e talheres em posições simétricas. Parava, afastava-se um pouco, e via que estava tudo bonito. Continuava: “és o maior enlevo da minha vida, és o reflorir do meu amor”, emendando com outra canção, Quero beijar-te as mãos. Quando virava o rosto e me via escutando-a com os olhos, desabrochava um sorriso no meio da melodia e já começava uma outra, “encosta tua cabecinha no meu ombro e dorme”, que recebia especialmente para mim: ela trocava o “chora” original e conjugava o sono do filho. Uma vez, enquanto bordava uma toalhinha de rosto, pedi-lhe: “cante aquela, mamãe, a das mãos pra beijar...”. “Ah, a do Alcides Gerardi... ”, atendia, identificando o cantor. E cantava abrindo outro arco de um sorriso.
Adolescente, quando comecei a colecionar vinis, fui a uma loja no centro de Fortaleza comprar os discos com essas canções de minha mãe. Encontrei o LP com o título duplo Me leva/Alguém me disse, respectivamente, o samba de José Garcia, Silas de Oliveira e Anísio Silva, e o bolero de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, que abre o lado A e deu ao cantor, pelo estouro nas rádios e programas de auditório, o Disco de Ouro por ter vendido mais de dois milhões de cópias, em 1960.
Pedi ao rapaz, sempre solícito por trás do balcão, o LP de Alcides Gerardi, o que tinha Quero beijar-te as mãos. “Mas essa música não é com Alcides Gerardi, quem canta é o Anísio Silva”. E me mostrou o disco de 1959, Anísio Silva canta para você. Puxou o bolachão do invólucro de papel e apontou, "Aqui, ó", a faixa que abria o lado B, uma guarânia composta por Arsênio de Carvalho e Lourival Faissal.
- Mas não tem uma gravação com Alcides Gerardi? – Perguntei, sem achar que minha mãe estivesse errada.
- Que eu saiba, não – falou o rapaz, indo até a um canto da prateleira. - Do Alcides Gerardi tem esse aqui, com um grande sucesso dele – disse colocando o disco no balcão e indicando a primeira faixa do lado A, Cabecinha no ombro.
Olhei demoradamente a capa.
- Acho que esse aí não é o cantor, não – comentou sobre foto da moça com a cabeça no ombro de um garboso rapaz, típico galã dos filmes da Atlântida. A imagem, que me pareceu mesmo ilustrativa para a faixa-título, não era o que me despertava atenção. Naqueles longos segundos pensei sobre quanto tempo minha mãe se enganara, mesmo ouvindo os informes na radiadora de Crateús, os programas nas válvulas do rádio ABC.
Levei os três discos e em casa disse para ela que Quero beijar-te as mãos não era com Alcides Gerardi, e sim com Anísio Silva. Mostrei-lhe o LP. Em silêncio olhou a capa, a contracapa... Puxou o vinil, balançou verticalmente a cabeça e disse com muita tranquilidade: “Bom... muito bom... adoro o Anísio Silva, mas prefiro com o Alcides Gerardi."
Por um tempo pesquisei se o cantor gaúcho fizera alguma gravação dessa música, já que ela afirmava com tanta convicção que gostava mais com ele. Nunca encontrei.
No meu novo livro, Trem da memória, em um trecho faço menção a algumas canções que meus pais ouviam. E mantive nos versos a música na voz de Alcides Gerardi, arriscando a reclamação e correção de algum atento historiador musical. Preferi a licença poética-afetiva do engano de minha mãe.
Foi lá
que meu pai lustrava o vulcabrás
enquanto esperava a volta do boêmio Nelson
que alguém me disse que minha mãe
cantava com Anísio Silva enquanto fazia o jantar
e eu como Alcides Gerardi beijava-lhe as mãos
enquanto neste poema estendo minha saudade.
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Trem da memória, poesia
Editora Radiadora, 2022
Coordenação editorial: Alan Mendonça
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
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O livro foi lançado em 30 de julho na sede da Editora no Espaço Cultural Kraft, em Fortaleza. Em Brasília será em 14 de setembro, 19h, no Bar Beirute da 109 Sul, dentro da programação Beira Cultural, com apresentação do poeta Ismar Lemes de Abreu e participação de Vanderlei Costa com leitura performática de trechos.