sábado, 11 de janeiro de 2025

de poeta para poeta


Quando conheci Nirton Venancio, o abraço foi o de amigos de muito tempo, tamanha a emoção de nosso encontro frente a frente.
Quem nos pôs em rota de celebração mútua foi o fundamental Alan Mendonça, quando, pouco tempo antes, me possibilitou participar de vivências poéticas virtuais realizadas pela Editora Radiadora, pelos 2020 impossíveis de esquecer.
Foi também Alan quem me possibilitou o apaixonamento pela poesia "nada transitória", como costumo repetir, emergida por Nirton.
Nirton Venancio tem ares tímidos e uma doçura inigualável. A poesia dele é algo extraordinariamente envolvente. De tal maneira nos toma o espírito e as pulsações que não nos satisfazemos com uma leitura somente de seus versos.
Já disse a ele: Poesia provisória e Trem da memória estão sempre por perto, porque se tornaram importantes para mim, tal qual a poesia que também pulsa no poeta Alan Mendonça.
As duas páginas posta aqui são excertos do livro Trem da memória. Reparem na sutileza das imagens criadas, na inquietante e precisa seleção vocabular, no poético e emocionante tratamento que esse poeta dá às suas memórias.
Saboreiem os excertos e, depois, invistam na leitura plena de Trem da memória. O livro está disponível no site da Radiadora.

- Chico Araújo, poeta 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

vida cabralina


Fotos: BBC News Brasil

Abro um dos cadernos onde anoto datas de chegadas e partidas de escritores, e vejo que hoje completam 105 anos de nascimento do poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto. Esse meu hábito cartorial afetivo faz-me sempre estar em contato com minhas referências e assim reverenciá-los.
Lembrei-me de um fato inusitado em sua vida.
Em 1952 João Cabral servia na embaixada em Londres. Nas pausas dos trabalhos burocráticos, lia poemas de Dylan Thomas, assistia a filmes de Alfred Hitchcock, não perdia os jogos do Chelsea, e colaborava com a revista do Partido Trabalhista inglês.
Foi para uma edição desse periódico que Cabral escreveu ao colega Paulo Cotrim Rodrigues Pereira, lotado em Hamburgo, Alemanha, pedindo-lhe um artigo sobre a economia brasileira. No trânsito entre as mesas, a carta passa pelas mãos de Mário Calábria, diplomata então secretário de Guimarães Rosa na embaixada.
Suspeitando de uma célula comunista no Itamarati e que o poeta pernambucano faria parte com outros diplomatas, entre eles o filólogo Antônio Houaiss, Calábria mandou cópias para Estado-Maior do Exército Brasileiro e para o jornalista Carlos Lacerda, notório opositor de Getúlio Vargas. Resoluto em atacar o governo via embaixadas, Lacerda divulga a carta em seu jornal, Tribuna da Imprensa, com a estrondosa manchete: "Traidores no Itamarati".
João Cabral, perplexo, foi afastado de suas funções, chamado ao Brasil para responder a um inquérito e colocado em disponibilidade sem vencimentos. Até 1954, quando foi reintegrado, por decisão do STF, o poeta, com mulher e três filhos, sobreviveu escrevendo editoriais e obituários para os jornais Última Hora, de Samuel Wainer, e A Vanguarda, de Joel Silveira.
De volta à diplomacia, João Cabral foi para Barcelona. Viveu sua carreira diplomática, de 1945 a 1990, por 14 países, como cônsul e embaixador. Sua paixão era, declaradamente, a Espanha, principalmente em Servilha, onde dizia se sentir em casa.
Gostava de assistir touradas, e comparou a lida na arena com o ofício da escrita. Em entrevista a José Castello, autor da biografia João Cabral de Melo Neto: O homem sem alma, disse: "O poeta é como o toureiro, precisa viver medindo forças com a morte, ou não vive".

sábado, 4 de janeiro de 2025

a última viagem


Foto: Acervo Collection Catherine et Jean Camus
Na manhã de 4 de janeiro de 1960 o escritor franco-argelino Albert Camus comprou passagem de trem de Villeblevin à Paris. Iria em companhia de seu amigo, o poeta René Char, a quem considerava o maior desde Rimbaud e Apollinaire. Seriam 105 quilômetros de boa conversa sobre literatura enquanto da janela admiravam a paisagem verde riscando de leve. Imagino a cena e sento-me no banco detrás, observando cada gesto, ouvindo cada palavra.
Mas Camus de última hora aceitou o convite do seu editor Michel Gallimard e entrou no sedã Facel Vega Excellence. Completavam a lotação a esposa e a filhinha de Michel e o cachorro. Já perto da cidade Sens, o carro repentinamente rodopia, descontrola-se em direção a uma árvore, bate em outra e se arrebenta. O escritor morre na hora, o editor dias depois, a mulher e a menina se salvam e o animal sai em disparada. Nunca o encontraram.
A primeira vez que li sobre as circunstâncias de sua morte, entrei em reflexões e perplexidades sobre as ironias, sortilégios e artimanhas do universo.
Ao lado do corpo de Camus, a maleta com os originais manuscritos do romance autobiográfico que estava escrevendo, uma espécie de testamento literário e político de suas origens na Argélia, O primeiro homem. Numa anotação visionária, registrou nas primeiras páginas que aquele livro não deveria ficar inacabado. Foi publicado por sua filha, Catherine Camus, em 1994. O escritor sempre comentava com os amigos que "nada é mais escandaloso do que a morte de uma criança, e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel".
No capítulo I desse livro postremo, há um trecho em que considerações sobre o sentido da vida, sobre o efêmero que somos e o eterno que pretendemos, se acentua como prólogo de uma dissertação filosófica que se desenvolve ao longo dessa busca proustiana. Jacques Cormery, o personagem quarentão alter ego de Camus, depois de visitar o túmulo do pai que não conheceu, vai à casa do amigo Victor Malan, alfandegário aposentado, a quem devota atenção.
- Quando se tem 65 anos, cada ano é uma prorrogação. Gostaria de morrer tranquilo, e morrer é assustador. Eu nada fiz. – Diz o amigo.
Jacques, com o olhar filial, contrapõe com apreço e reconhecimento.
- Há pessoas que justificam o mundo, que ajudam a viver só com sua presença.
Albert Camus teve um final absurdo e seu tempo não foi prorrogado, mas os intensos 46 anos vividos e sua obra justificam o mundo.