Foto: Acervo Collection Catherine et Jean Camus
Na manhã de 4 de janeiro de 1960 o escritor franco-argelino Albert Camus comprou passagem de trem de Villeblevin à Paris. Iria em companhia de seu amigo, o poeta René Char, a quem considerava o maior desde Rimbaud e Apollinaire. Seriam 105 quilômetros de boa conversa sobre literatura enquanto da janela admiravam a paisagem verde riscando de leve. Imagino a cena e sento-me no banco detrás, observando cada gesto, ouvindo cada palavra.
Mas Camus de última hora aceitou o convite do seu editor Michel Gallimard e entrou no sedã Facel Vega Excellence. Completavam a lotação a esposa e a filhinha de Michel e o cachorro. Já perto da cidade Sens, o carro repentinamente rodopia, descontrola-se em direção a uma árvore, bate em outra e se arrebenta. O escritor morre na hora, o editor dias depois, a mulher e a menina se salvam e o animal sai em disparada. Nunca o encontraram.
A primeira vez que li sobre as circunstâncias de sua morte, entrei em reflexões e perplexidades sobre as ironias, sortilégios e artimanhas do universo.
Ao lado do corpo de Camus, a maleta com os originais manuscritos do romance autobiográfico que estava escrevendo, uma espécie de testamento literário e político de suas origens na Argélia, O primeiro homem. Numa anotação visionária, registrou nas primeiras páginas que aquele livro não deveria ficar inacabado. Foi publicado por sua filha, Catherine Camus, em 1994. O escritor sempre comentava com os amigos que "nada é mais escandaloso do que a morte de uma criança, e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel".
No capítulo I desse livro postremo, há um trecho em que considerações sobre o sentido da vida, sobre o efêmero que somos e o eterno que pretendemos, se acentua como prólogo de uma dissertação filosófica que se desenvolve ao longo dessa busca proustiana. Jacques Cormery, o personagem quarentão alter ego de Camus, depois de visitar o túmulo do pai que não conheceu, vai à casa do amigo Victor Malan, alfandegário aposentado, a quem devota atenção.
- Quando se tem 65 anos, cada ano é uma prorrogação. Gostaria de morrer tranquilo, e morrer é assustador. Eu nada fiz. – Diz o amigo.
Jacques, com o olhar filial, contrapõe com apreço e reconhecimento.
- Há pessoas que justificam o mundo, que ajudam a viver só com sua presença.
Albert Camus teve um final absurdo e seu tempo não foi prorrogado, mas os intensos 46 anos vividos e sua obra justificam o mundo.