terça-feira, 23 de dezembro de 2008

luar

foto Kiriko Shirobayashi

Vislumbro uma luz sob a porta.
Ando.
Uma réstia toca a minha pele.


Esqueceram a lua acesa.

(do livro “Raios”)

sábado, 20 de dezembro de 2008

madrugada

foto Rosalina Afonso

Os poetas dormem tarde.
A poesia é que acorda cedo.

(do livro "Poesia provisória")

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

medida

foto Carlo Santis

Caberão no poema

quando
soltos,
os beijos

quando
largos,
os abraços


quando
estradas,
os passos
?


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 14 de dezembro de 2008

recorte

foto Maurício Rolo

Cada gesto posto no espaço
me subtrai (um pouco) a intimidade.

(um verso de "Postura", do livro "Poesia provisória")

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

presença

foto Lukas Lehmer

Vivo em ti
todos os momentos de mim.

(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

asas

foto Bogdar Jarocki

Tirem-me a roupa
o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
que criei pra mim


tirem-me o domingo
a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
que criei pra mim

tirem-me os lábios
o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
que criei pra mim


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 7 de dezembro de 2008

prazo

foto Mila Petrelle

Impossível
terminar o poema nos próximos dias:
falta uma vírgula aqui
aguarda um sentimento ali
avista-se uma cidade acolá.


E essas correções, dores e risos
costumam demorar
uma vida inteira...


(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

cofre

foto Sander Levini

Quando quiseres
venhas
e gires com as pontas dos dedos
o meu coração.

Encontrarás
teus segredos nos meus olhos abertos.
Guardo no peito
o íntimo
de quem se achega.

(Do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

metade

foto David Martins

O que se vê em mim
não é o todo:
escondo gestos.
O que se sabe de mim
(ainda) não é tudo:
escondo datas


Metade que nem eu mesmo sei
mais corrói do que vive e cresce:
e silenciosamente é uma doença
(e não me esquece).

 

Convivo como caça e caçador
dentro de mim:
uma hora me acho
a outra não me aceita
e sou metade do rosto desenhada
a outra metade desfeita.



(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 16 de novembro de 2008

sobre viver

Gil Vicente, nanquim sobre papel

só escaparemos se conversarmos
se sentarmos
à mesma mesa
e trocarmos olhares
como amigos
ou como sobreviventes.


(do livro “A paisagem e a distância”)

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

pronominal

foto Marin

É preciso
que nossos dedos se enlacem
sem necessariamente
que nós em nós se passem.

É preciso
que num eclipse eu desapareça
sem que lhe abandone
e quando a lua passar você me esqueça.

É preciso
que eu tenha seu prenome
sem que lhe substitua
quando assinar embaixo o seu sobrenome.

Por certo:
ninguém ama por decreto.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

linha

foto Christian Dule


Essa linha que nos separa
no meio da sala
é a mesma que estranhamente
nos enlaça
e assim como nos ameaça
nos joga no mesmo abraço.


Se você parte por um século
ou por segundos me ausento,
fica sempre do outro um pedaço
na viagem solitária
de quem segue em desalento.

(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

domicílio

foto Michael Kenna

Não me procure nesse endereço:
meu coração mudou-se.
Pouco resta do antigo inquilino.


A casa está vazia.


(do livro “Raios”)

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

regime

foto Manuel Sardinha

Tenho seus beijos
como medida.
Não ponha açúcar no café.


De doce basta a vida.


(do livro “Raios”)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

reverso

foto Bogdar Jarocki

Já que entre nós
todo o contrário é crível

não desfaça cerimônia:
volte o mais rápido impossível.

(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 23 de setembro de 2008

a paisagem e a distância (fragmento)

foto Nelson Kon

o que é uma cidade
na história de
um homem?
não se sabe ao certo
como não se explica
por que esse homem respira
e o que alimenta
tantos desejos

a cidade
(no final das contas
e das ruas)
é mistura confusa
de susto e alívio
que abraça e larga
nossa carne
como quem ama e desaparece


apesar dos desenhos
que orientam o presente
a cidade
é o mistério
sobre a cabeça dos homens
que caminham sobre passos
novos a cada desejo
grandes a cada abraço
profundos a cada vontade.

(do livro "A paisagem e a distância")

domingo, 7 de setembro de 2008

cofre

foto Pat Nickplemse

Quando quiseres
venhas
e gires com as pontas dos dedos
o meu coração.

Encontrarás
teus segredos nos meus olhos abertos.

Guardo no peito
o íntimo
de quem se achega.

(do livro "Poesia provisória")

sábado, 12 de julho de 2008

multidão

foto David Martins

Chora quem conheço.
Choram aqueles longe de mim.
Chora até você que me fez ver:


A dor não é um privilégio meu.

(do livro “Raios”)

terça-feira, 8 de julho de 2008

carinho

foto Pascal Renoux

Minha mão passeia
sobre a fertilidade de tua pele
e não existe nada mais além dessa
eternidade.
Passeia como se voasse
(se pássaro eu fosse
e asas minhas mãos lentas)


mas é vôo
tudo que o amor
nesse momento conduz ao sempre.


(do livro “Poesia provisória”)

quinta-feira, 12 de junho de 2008

namorada

foto Ashley Keynes

Hoje, como em todos os dias, eu faço um filme de amor para você. Eu escrevo um poema com as mais belas palavras que eu possa extrair do meu coração. Eu componho uma música com os melhores arranjos de flores.

Hoje, como em todos os dias, eu digo que lhe amo.

terça-feira, 3 de junho de 2008

exílio

foto Lukas Stevenson

Escrevo-te distante.
Não meu corpo tão longe do mar:
distante do oceano.

Vivo por enquanto a quilômetros de mim.
O que restou aos teus olhos
é o que mantém a lembrança
de um pouco que me definia.

Vago a olhar-me para trás
e de lá tento me alcançar de volta.

Não me perguntes o que houve.
Tão logo um lado e outro se reencontrem
passarei por tua casa.

(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 21 de maio de 2008

estima

foto Gyulis Santis

O homem é um bicho-homem
que não sabe se é um rato,

fosse o homem mesmo um rato
talvez não tivesse esse nome

posto que pode ser lobisomem
o homem não sabe o que é de fato.

Homem e rato – ambos têm fome
e comem tudo que está no mato,

quando comem, comem e somem
deixando sem fundo o chão e o prato;

mesmo não sendo um rato
o homem corre com medo da fome

como o rato corre do gato
que come o rato com medo da fome.

O homem (quem sabe...) é um passarinho
sem asas, sem bico e sem verão

que vive a vida atrás do ninho
angustiado no que chama solidão,

corre o mundo, sem parente, sem vizinho
montado no seu corpo feito alazão

carente de abraço, pão e vinho
perdido no céu, no mar e no sertão

sem saber se no incerto caminho
voa como pássaro ou avião.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

quinta-feira, 24 de abril de 2008

trem da memória (fragmento)

foto Mario De Biasi

Tudo foi tão de repente
diante dos meus olhos
que não houve tempo
para retornar ao corpo do menino
que brincava na calçada.

A memória viaja
- trem inútil -
e não traz as roupas
que se vestia nas tardes de domingo
e a estrada some
deixando o mundo
como um grande circo
na praça da estação.

(do livro “Trem da memória – um poema”)

quarta-feira, 26 de março de 2008

promessa

foto Mona Kuhn

Ela disse
que me amaria para o resto da vida.
Ela me disse.

Como a vida é curta.

(do livro “Raios”)

segunda-feira, 17 de março de 2008

mímica

foto Bruce Taj

Os gestos lentos das mãos
somem com as máscaras no rosto
dia
após
dia:
até nada mais restar
sobre os ossos da face.

O destino das vértebras
sabe dele o chão

e
dos pensamentos
fica nos outros
o que passou pelo coração.


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 17 de fevereiro de 2008

dados pessoais

foto Daniela Labieni

Cinqüenta e muitos quilos
de idade e fome.
Vinte e tantos e espantosos anos
que a vida pesa em mim.

Do lado esquerdo
o coração incomoda
quando inquilino
quando solitário
e se eu pudesse arrancá-lo
não o faria.

Sou o encontro de duas vogais
entre o menino que se foi
e aquele senhor que se aproxima.
O presente
é esse grito na janela
esse silêncio no quarto
à guisa de forças
para carregar esses anos e esses quilos.


(do livro “Roteiro dos pássaros remixado")

domingo, 13 de janeiro de 2008

anônimo

foto Jerry Schatzberg

Eu nunca deixo pistas dos meus pecados.
Escondo meus delitos
e deixo a condenação para a volta.
Estou muito apressado.

Eu nunca deixo atalho
para me descobrirem:
prefiro o próximo encontro
com o que encontrar próximo aos meus olhos.

Eu nunca deixo traços dos meus planos.
Deixo o resultado de tantos enganos
como pudesse ser também seu
aquilo que foi somente meu.

Não passo procuração para sentimentos
enquanto viajo para lugar desconhecido.

Este poema pode me custar a vida.
Podem me custar os amigos.
E me gostarem os inimigos.

Mas não deixarei rascunho dos meus reversos.


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 6 de janeiro de 2008

linha

foto Ryan McVay

Essa linha que nos separa
no meio da sala
é a mesma que estranhamente
nos enlaça
e assim como nos ameaça
nos joga no mesmo abraço.

Se você parte por um século
ou por segundos me ausento,
fica sempre do outro um pedaço
na viagem solitária
de quem se perdeu
e segue em desalento.

(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

metade



O que se vê em mim
não é o todo:
escondo gestos.
O que se sabe de mim
(ainda) não é tudo:
escondo datas
Metade que nem eu mesmo sei
mais corrói do que vive e cresce:
e silenciosamente é uma doença
(e não me esquece).

Convivo como caça e caçador
dentro de mim:
uma hora me acho
a outra não me aceita
e sou metade do rosto desenhada
a outra metade desfeita.

(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

linhagem

foto Kiriko Shirobayashi

Nossos filhos
dormem no quarto ao lado.
O amor assim me convence
que ele se estende
nos sonhos que não nos pertencem.

(do livro “Raios”)

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

desmontando as tardes

foto Mario De Biase, Circo, 1955

Eu podia ver o circo da janela do terceiro andar. Ali defronte, no terreno por onde os cachorros circulavam. Nunca desci nas tardes de sábado e manhãs de domingo para assistir a uma das sessões anunciadas no serviço de som que arranhava os ouvidos. Não porque era um circo pequeno: o que eu gostava mesmo era ver o circo da janela do terceiro andar.

Um dia começaram a desmontar o circo. Foi quando me lembrei que dias antes anunciaram a última semana com atrações imperdíveis. Desmontavam o circo e desfaziam-se também minhas chances de assistir alguma apresentação se eu mudasse de idéia e descesse as escadas rumo à bilheteria. Da janela acompanhei por quase o dia todo o circo se resumindo a uns poucos caminhões velhos amontoados de tábuas, lonas, grades... e pessoas sonâmbulas sob o sol de segunda-feira.

Minhas tardes passaram a ser mais solitárias no retângulo da janela: não me importava o espetáculo, o que depois aconteceria à noite no picadeiro: o que me segurava os olhos era a vida ao redor da lona suspensa. Eram os artistas sem suas roupas de artistas, as pessoas comuns vivendo na temporalidade dos trailers, no improviso dos lares. Eram os animais tornados comuns na pouca extensão das jaulas. O melhor era aquele espetáculo, que me extasiava e incomodava, visto do meu camarote especial da janela do terceiro andar, tão longe e tão perto.

O circo foi embora e o melhor poderia ter sido mesmo partir: viajar sem ter um passado nos álbuns, ou um futuro agendado. Viajar tendo sempre só o presente que dura algumas semanas, poucas vezes uns meses, nunca muitos anos. Viajar na busca eterna do presente.
As estacas não criam raízes no chão da cidade.
(do livro Outras Prosas)

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

postura

foto Josephine Sacabo

Cada gesto posto no espaço
me subtrai (um pouco) a intimidade.

Mas não há como negar
o tamanho do rosto
e esconder-se da luz diante do espelho.

Tenho (sem saída)
a vida presa aos pulsos
o corpo atracado ao tempo
levando-me neste soluço constante
nesta postura indecente
nesta vontade (sempre!)
de ser feliz.

A idade é pouca
sobre a carne que preciso ter
para descobrir o que esconde
o silêncio de amanhã
e me deixa com as mãos
curiosas
os sentimentos
acesos
o coração
(in) quieto.

Por isso
no estrondo dos dias nas ruas
na solidão das cercas na noite
mantenho o olho aberto
pastorando (e me resgatando a)
cada instante
em que a vida não cochila.


(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

prazo

foto Pablo Hernandez

Impossível
terminar o poema nos próximos dias:
falta uma vírgula aqui >
aguarda um sentimento ali,
avista-se uma cidade acolá.

E essas correções, dores e risos
costumam demorar
uma vida inteira...

(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 27 de outubro de 2007

unidade

foto Rubens Venancio


Cada dia
tem sua porção de vida
tem sua imensidão de luz
tem sua solidão de gente
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem na terra
a colheita e a semente.

Cada dia
tem seu ontem e amanhã
tem seu silêncio de espera
tem sua largura de saudade
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem no continente
a distância e a cidade.

Cada dia
tem seu mar e os peixes
tem seus barcos e as viagens
tem seus remos e mãos fortes
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem no porto
o rumo do sul e do norte



(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

o morto

Gil Vicente, "Repouso", nanquim sobre papel

I
O morto
tomou destino ignorado:

em que planície nos céus
sibila o seu silêncio?

Com sua armadura desfeita
o que resta é inútil:
não suporta o vento
(que sopra com a chuva)
não será restaurado nos museus
(que espiam a história)
nem se moverá com as lembranças
(que amontoam os retratos).

O morto
tomou destino ignorado.

II
Não tenham medo:
o morto não se levantará
de sua solene posição

deitado como nunca
com seu nariz e seu sapato
em
riste.

III
O morto
(saibam)
não segue no cortejo:
segue um morto
(peso inútil)
que o limite do nosso olho vê.

IV
O morto independe da vontade
dos que lhe jogam areia e flores
dos que lhe dizem orações e calam
dos que choram e esquecem
- o morto
agora
é eterno.

V
Lembramos o tamanho do morto
com suas roupas
com sua voz
com sua dor
e choramos o tamanho que falta
a lágrima que salta
em nós
até quando aprendermos
a não ser somente vivos.

VI
De nada mais sabemos
até que o morto nos mande notícias
e que seu vulto passe ao longe
como passam os viajantes
(depois)
do entardecer.

VII
Maior é o morto
na viagem
que ele continua


(em que planície nos céus?).


(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

primeira infância


Rendo-me à poesia das crianças.
Perguntei à minha filha de quatro anos:

- o que você quer ser quando crescer?
- grande.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

impregnados

foto Eric Alan Pritchard

Ele fechou a porta e saiu. Precisava ir embora. Não era o que ele queria: era o que precisava. Não lhe era fácil ouvir o que ouviu e ter de ir embora. Fechou a porta e saiu. Agora as palavras ficaram atrás da porta, lá dentro do quarto. E dentro dele também continuariam. “Não vou tomar banho”, disse ela. Ele ouviu e não entendeu. Ela, com o rosto virado e apoiado nas duas mãos juntas, repetiu baixinho “não vou tomar banho”, como se agora fosse somente para si. Mas ele ouviu as palavras sussurradas no dorso das mãos, ali do outro lado, ela de costas para ele, ele que fixava o olhar no teto. Desprendeu-se, virou o rosto e olhou para ela. O cabelo cobria-lhe a nuca. O olhar dele tentou desembaraçá-los e atravessar até o outro lado, ver o seu rosto, ouvir de novo o que ela falara. “Nunca mais vou tomar banho, nunca mais”, continuou ela. Esboçou um gesto de afago em seus cabelos, não para que ela virasse o rosto, o que poderia ter sido ótimo, e esta história seria diferente, mas ele não fez da intenção um gesto sequer. Voltou o rosto para o teto. “Quero ficar com seu cheiro em meu corpo”, disse ela mais uma vez, alongando-se nas palavras, e foi no momento em que ele fechou os olhos para não ficar mais uma vez fixo naquele branco do teto, naquela lâmpada apagada, naquela luz do dia que começava. Fechou os olhos e as palavras dela entraram mais fortemente em seus ouvidos. “Para sempre... quero ficar com seu cheiro pra sempre”, era quase um murmúrio, mas ele ouviu nitidamente cada palavra, ali do outro lado, com o rosto nas mãos juntas, as mãos por cima do travesseiro fino. Ele não conseguia abrir os olhos. As palavras ressoavam em sua cabeça, se estendiam lentamente lá por dentro e sumiam quando novamente as palavras voltavam, “seu cheiro em mim... pra sempre”. Abriu os olhos, decidira, precisava ir embora: não queria: precisava. Levantou-se e o ruído da cama encobriu uma talvez repetida fala. Ele vestiu-se enquanto olhava para ela, ali deitada, confundida entre os panos, a brancura dos lençóis, a extensão da cama que parecia maior agora. Não podia ficar olhando-a, ou ficaria ali. Não queria ir embora: precisava. Virou-se e foi em direção à porta. Abriu lentamente, como se ela estivesse dormindo e não quisesse acordá-la. Fechou a porta e saiu. Precisava ir embora. Não era o que ele queria: era o que precisava. Não lhe era fácil ouvir o que ouviu e ter de embora. Fechou a porta e saiu. Agora as palavras ficaram atrás da porta, lá dentro do quarto. E dentro dele também continuariam.
(do livro "Outras prosas")

sábado, 15 de setembro de 2007

regime

foto Jonnie Miles

Tenho seus beijos
como medida.
Não ponha açucar no café.

De doce basta a vida.

(do livro "Raios")

domingo, 26 de agosto de 2007

esconde-esconde

foto Jean-Sebastien Monzani

Você troca tudo de lugar:
esconde minhas roupas
para quando no amanhecer eu lhe procurar.

Você troca o sol pelo luar:
esconde os meus beijos
para não amanhecer quando a noite acabar.

Você troca os cds de lugar:
esconde os meus livros
para quando amanhecer eu me desesperar.

Meu peito alcança o seu olhar.
A casa é pequena, o abraço tão largo:
eu sei onde seu coração está.

(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 23 de julho de 2007

migrante

foto Lars Ihring

em que acreditar
além da cidade onde queremos morar
e em sua direção
afivelamos nossas malas
(com roupas e retratos)
enchemos nosso peito
(de esperança e saudade)
abrimos nossos olhos
(de horizonte e espanto)?

em que acreditar
nessa (qualquer) cidade
construída de concreto e traços
além da argamassa dos nossos sonhos?

mas se na cidade
cabe a pedra
cortada em mil pedaços sobre a solidão
caberá (muito mais)
a nossa vontade
solta em muitos corações e braços
povoando a paisagem e a distância.

(do livro "Brasília e outras viagens - a paisagem e a distância")

sábado, 7 de julho de 2007

per si

foto Javier López

Não quero teu verso enteado
na minha poesia.
Não se meta onde é chamado.
Faça de conta
que não escuta os meus apelos
e me deixe encontrar
esse endereço errado.

Quero meu desencanto legítimo
e esse beijo desfazendo a azia.

Não me venha com tradução simultânea
para música que me castiga.
Não me meta onde sou cantado.
Faça de conta
que não entende esse estrangeiro
e me deixe desencontrar
esse futuro passado.

Quero o ronco do meu íntimo
e este coração que a alma mastiga.

(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 27 de junho de 2007

ventania

foto Perry Dudikoff

O vento forte da vida
assanha os meus cabelos,
molda o rosto,
apaga os passos.

Mas

a minha existência
não se limita ao tamanho do corpo:
tenho todo um rosário de dias
e amores que estendem os braços
como se fossem mágicos
e olhos que atravessam o mar
como se fossem pássaros.


(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Luar

foto Kiriko Shirobayshi


Vislumbro uma luz sob a porta.
Ando.
Uma réstia toca a minha pele.

Esqueceram a lua acesa
.


(do livro “Raios”)

quarta-feira, 13 de junho de 2007

longe

foto Cameron Davidson


Em algum lugar

o mar existe

para algum porto

ser avistado.


(do livro "A paisagem e a distância")

terça-feira, 12 de junho de 2007

namorada

foto Eric Boutilier

Cris, minha namorada, minha eterna namorada, hoje é dia para lembrar que todos os dias são seus.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

lembrança

foto Kiko Shirobayaski


Lembro-me que te olhava
e estavas nua
e não havia por perto
nem roupas
nem sombras
que te levassem de volta à sala.




Ficamos únicos
como uma lembrança
do mesmo quarto
dentro de nós.



(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 19 de maio de 2007

quimera

foto Hugo Dias


O anel que eu tinha nos dedos
era vidro e se quebrou.
O amor que eu queria na vida
era nunca e quase me acabou.


(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

sexta-feira, 11 de maio de 2007

profano

foto Marcus Claesson

Ameaçam-me atear fogo
às vestes e às paixões
se eu não calo o canto
se eu não sigo as setas
se eu não cesso os beijos

isso
quando mais ardem
fora e dentro de mim

as vestes e as paixões.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

quinta-feira, 10 de maio de 2007

sobre viver

nanquim sobre papel, de Gil Vicente


só escaparemos se conversarmos
se sentarmos
à mesma mesa
e trocarmos olhares
como amigos
ou como sobreviventes.

(do livro “A paisagem e a distância”)

quarta-feira, 2 de maio de 2007

o morto

Repouso, nanquim sobre papel, de Gil Vicente


I
O morto
tomou destino ignorado:

em que planície nos céus
sibila o seu silêncio?

Com sua armadura desfeita
o que resta é inútil:
não suporta o vento
(que sopra com a chuva)
não será restaurado nos museus
(que espiam a história)
nem se moverá com as lembranças
(que amontoam os retratos).

O morto
tomou destino ignorado.

II
Não tenham medo:
o morto não se levantará
de sua solene posição

deitado como nunca
com seu nariz e seu sapato
em
riste.


III
O morto
(saibam)
não segue no cortejo:
segue um morto
(peso inútil)
que o limite do nosso olho vê.

IV
O morto independe da vontade
dos que lhe jogam areia e flores
dos que lhe dizem orações e calam
dos que choram e esquecem
- o morto
agora
é eterno.

V
Lembramos o tamanho do morto
com suas roupas
com sua voz
com sua dor
e choramos o tamanho que falta
a lágrima que salta
em nós
até quando aprendermos
a não ser somente vivos.

(do livro “Poesia provisória”)