sexta-feira, 30 de setembro de 2005

longes

foto Bill Peronneau

em algum lugar
o mar existe
para algum porto
ser avistado.
(do livro "A paisagem e a distância")

quarta-feira, 28 de setembro de 2005

postura

foto Tomasz Wojnarowicz


Cada gesto posto no espaço
me subtrai (um pouco) a intimidade.

Mas não há como negar
o tamanho do rosto
e esconder-se da luz diante do espelho.

Tenho (sem saída)
a vida presa aos pulsos
o corpo atracado ao tempo
levando-me neste soluço constante
nesta postura indecente
nesta vontade (sempre!)
de ser feliz.

A idade é pouca
sobre a carne que preciso ter
para descobrir o que esconde
o silêncio de amanhã
e me deixa com as mãos
curiosas
os sentimentos
acesos
o coração
(in) quieto.

Por isso
no estrondo dos dias nas ruas
na solidão das cercas na noite
mantenho o olho aberto
pastorando (e me resgatando a)
cada instante
em que a vida não cochila.
(do livro "Poesia provisória")

domingo, 25 de setembro de 2005

suspense

foto Davis Fokos


Que viagem é essa
(que fazemos)
durante dias
noites
e eclipses
dentro de um corpo
(vagarosamente)
para frente
(que não vemos)?

Existirão braços abertos
ou abismos estendidos
no final de nossos olhos?

Haverá festa
luzes
bandeiras
gente na estação?
Haverá (depois)
tranqüilidade
planície
sonho

ou
solidão?


(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 20 de setembro de 2005

anônimo

foto Nicholas Davies

Eu nunca deixo pistas dos meus pecados.
Escondo meus delitos
e deixo a condenação para a volta.
Estou muito apressado.

Eu nunca deixo atalho
para me descobrirem:
prefiro o próximo encontro
com o que encontrar próximo aos meus olhos.

Eu nunca deixo traços dos meus planos.
Deixo o resultado de tantos enganos
como pudesse ser também seu
aquilo que foi somente meu.

Não passo procuração para sentimentos
enquanto viajo para lugar desconhecido.

Este poema pode me custar a vida.
Pode me custar os amigos.
E me gostarem os inimigos.

Mas não deixarei rascunho dos meus reversos.
(do livro "Poesia provisória")

domingo, 18 de setembro de 2005

dimensional

foto David Fokos

A vida é larga
o mundo extenso

e minhas mãos indefesas
se entregam ao ofício de modelar
cada dia
afagar cada
rosto
segurar o remo quando a tempestade
avançar
sobre
nossos cabelos.

Por enquanto
a vida é larga
o mundo extenso

e a minha estranha forma humana
(escondida sob as roupas e as máscaras)
caminha entre os instantes
em que o relógio
divide
a dor e alegria
na pulsação que espanta a fragilidade
do corpo
e do coração.

Sei que no percurso
a vida é larga
o mundo extenso

e o chão do país
arde quilômetros sob os meus passos
as estrelas
faíscam distantes sobre minha cabeça
e a gravidade
dos fatos
(e dos tatos)
me põe em pé
enquanto a terra flutua no espaço
(solenemente)
carregando seus animais.



(do livro "Poesia provisória")

quinta-feira, 15 de setembro de 2005

vespertino

foto David Fokos

Dói
este cotidiano gesto
de ser poeta
e explorar as tardes
com seus terrenos e suas nuvens.

As tardes
(que chegam cedo)
se diluem
lentamente
em mormaço
e solidão
ao longo (e bem dentro) das retinas
acesas.

Fica do lado de cá
a lembrança do dia
com sua poeira e seus passos
sobre
o coração.

(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 14 de setembro de 2005

idade

foto Peter Grasser

Não temos (somente) a nossa idade
o espaço que se conta nos dedos:
temos o tamanho de nossos pais
nossos avós
bisavós
e todos vós que ecoam nos séculos
- somos centenários
e trazemos a lua e o sol
como herança

O sangue correu nas veias
no tempo
se estendeu na pele
e onde se guarda o coração
das pessoas.
Somos em cada pedaço de hoje
parte de um rio
movimento de emoções
que desemboca (feliz) em cada futuro.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 12 de setembro de 2005

abolerado

foto Leoni Oostvogel
Vagueio dentro do quarto
enquanto meu
coração
passeia longe de mim
e me reparto
entre
o começo e o fim
desta noite em que espero
notícias do dia
no alvorecer que teus olhos dirão
outro grito
outra emoção
que não seja este bolero
em que meu corpo se com
passa
vaguei
ando comigo dentro do quarto
en
quanto meu coração ultra
passa
fronteiras de luzes e portas
para chegar bempertopertode ti.

(do livro "Poesia provisória")

domingo, 11 de setembro de 2005

abstrato

foto Bill Peronneau

No tempo tudo cabe
tudo muda de lugar
tudo some
não ficam parados no espaço
o gosto das frutas
e o cheiro dos homens.

O tempo dispensa a vontade alheia
impõe-se sobre a selva e a cidade
e destas nascem as folhas e os filhos
que o próprio tempo amadurece e faz saudade.

O tempo – enorme! – eleva os deuses
arrasta os homens
e espalha o mistério de uns
sobre a solidão dos outros.

De muito longe o tempo caminha
não como um velho
tão pouco uma criança:
unicamente caminha
- e sugere a esperança
e adormece as rugas.

O tempo não é o mesmo
sobre os aviões e os pássaros:
nas asas de um
é tudo muito rápido
nas asas do outro
é tudo muito livre.

 
(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 7 de setembro de 2005

trechos

foto Ailine Liefeld

Tudo foi (tão) de repente
diante dos meus olhos
que não houve tempo
para retornar ao corpo do menino
que brincava na calçada.

A memória viaja
-trem inútil-
e não traz as roupas
que se vestia nas tardes de domingo
e a estrada some
deixando o mundo
como um grande circo
na praça da estação.
(...)
Mas o menino sumiu:
foi embora como quem cresce
e silenciosamente
atravessou os trilhos noturnos
da ponte de ferro
sobre o rio poty
onde as águas são barrentas
e as lavadeiras tristes.

Ninguém sabe do menino:
saberiam alguma notícia
se soubessem dos meus sonhos
de voar nas asas do bimotor
que pousava como um pássaro barulhento
nas tardes quentes do interior
(ali)
longe das feiras
rumo ao silêncio dos planetas
onde outro avião (de plástico) nunca chegou.

Não foram dados ao menino
nem os planetas
nem os presentes de todos os natais.
Aos poucos
esperava o mar com sua solidão
e em cada porto
uma cidade para atravessar.

(trechos do livro "Trem da memória")

segunda-feira, 5 de setembro de 2005

breu

foto Karez

A noite é o real do planeta:
o sol não é aqui
os fogos são de artifícios.

O dia é uma mentira.
(do livro "Raios")

sábado, 3 de setembro de 2005

vice-versa


foto Tim Flach

Sou
comprido
e sem solução:
tenho
os dois pólos
caminho teimoso
do norte ao sul
dos pés à cabeça
passando pelo mistério do coração
sou astronauta
e uso gibão
cavalgo curioso
da via-láctea ao sertão
e vice-versos
na minha
solidão.


(do livro "Poesia provisória")