Ao adentrar no vagão e tomar assento numa poltrona colada à janela, descobri de imediato que a viagem seria mais que uma aventura. Trem da memória (Editora Radiadora, 95 páginas, 2022, impressão e acabamento Expressão Gráfica, Fortaleza-CE), do cineasta, roteirista, poeta e professor de literatura e cinema Nirton Venancio, é um desfile de experiências sensitivas carregadas de recordações, reminiscências, lembranças e memórias abissais e emocionantes.
O dúplice Poesia-Memória transborda de forma pungente, fazendo da janela desse trem alado ora telinha de TV preto e branco, ora telona cinemascope colorida. Às vezes, um pano circense, outras um oitão de igrejas interioranas. Até mesmo a janela se faz de binóculo a perscrutar minudências existenciais e poéticas de expressão maiúscula no enquadramento da janela, que se transubstancia em monóculos coloridos cheios de amostras do cotidiano, das religiosidades, de laços familiares, de saudades, de desvãos, de baú de ossos... De instante a instante, somos sacolejados num "trempoema" pleno de relicários, confessionários, sacos de confetes e serpentinas, testamentos, inventários e diários íntimos do outrora.
Há na viagem intertextualidades e dialogismos que põem nos trilhos cinema e literatura, cotidiano e memória, passado, presente e futuro. Há reencontros de personagens reais e ficcionais em roteiros pactuados da história de vida real e de imaginários variados, coloridos, pretos e brancos, multifacetados, polissêmicos, cujos diálogos se desdobram e recobram existencialmente uma cosmovisão ao mesmo tempo impressionista e expressionista de inundar olhos e corações.
Ao final, não da viagem - porque essa é sem fim ante a estação passado-presente-futuro -, há um lindo inventário. Mesclado de pessoas, lugares, sabores, imaginários individuais e coletivos, experiências, sensações, emoções, efemérides, eventos, acontecimentos e uma plêiade de existências concretas e ideais que nos impulsionam a algo agônico ou memorial ante o trem que não descarrilha, mas nos cutuca encantadoramente. Nirton Venancio não é apenas o maquinista; é o passageiro que nos faz sonhar acordados. Ora em aconchego com as metáforas, ora em acalanto com a poiesis.
- Ronaldo Salgado, jornalista, professor da Universidade Federal do Ceará, autor de A crônica reporteira de João do Rio, dissertação de mestrado publicada em livro pela Edições Leo em 2006.
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Mais do que analisar o livro, você auscultou o poeta, caro Ronaldo. Tocou em pontos que estão no mais íntimo espaço de minha memória.
E parafraseando Caio Fernando Abreu, no meu coração tão cheio de marcas e poços, de trens e lugares, seu olhar afetuoso e preciso ocupa um dos lugares mais bonitos nessa viagem.
Imensamente grato.
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