segunda-feira, 31 de julho de 2023

incompletudes da memória


Trem da memória, de Nirton Venancio (Editora Radiadora 2022), sinto-o como escrita pulsátil. Cheio de vida, cada palavra pulsando em cada verso projeta um caminho (imperfeito, porquanto memória) que é, a um só tempo, procura e encontro, escavação, via passado, e edificação, por ele, para o agora que pode ser hoje no momento do depois. O "trem" proposto no título é de uma felicidade tão grande, enquanto expressividade de ideia, que, ao lê-lo, somos levados a saber estarmos diante de uma escrita que se teceu como movimento e que, por isso, nos faz trafegar por trilhos, ligando tempos de ontem aos tempos de agora. Via memória.
A cada verso de cada página, nós, leitores, nos deparamos com um “cascaviar” poético intenso e desafiador. Nesse processo, o eu lírico declara, já próximo do final da escrita feita:
O que escrevo são incompletudes:
há sempre quem lembro
e volto a sua casa
peço água e pergunto se sabe de mim
- o neto da costureira, o filho do bodegueiro.
Há sempre quem deslembro
e bate a minha porta
nada pede e pergunta se conhece quem foi
- o pai de lourim, o avô de fransquim.
Incertezas. Sim, o lidar com a memória causa o encontro com questões nem sempre possíveis de serem respondidas.
- Trecho do artigo Poesia que se eterniza, de Chico Araujo, poeta, professor do Centro Universitário Christus, publicado no jornal O Povo, Fortaleza, 23/6/2023
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa e IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br

sexta-feira, 14 de julho de 2023

o azul da memória


 Agora

nas páginas deste livro
o poeta pergunta
onde andará a cor azul
que se não era azul dos meus olhos miúdos
era da tarde
do dia
e da noite com sua toalha de linho
e suas estrelas de papel.

De tudo era azul
o que de passado guardo avante nos cadernos
na arquitetura das primeiras letras
caligrafia que anunciava um poema
e no silêncio do menino curioso
personagem que descrevia uma cena
às vezes de riso pequeno
devagar sempre divagando
com os brinquedos traçados pela mão do pai.

Ah, meu pai!
O pêndulo de minhas pernas
em sua cacunda
caminhando do casarão
à casa pequena sem rotunda
o menino ainda sem irmãos.

- Fragmento de Trem da memória, Editora Radiadora, 2022

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O livro concorre ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal, 65º Prêmio Jabuti e Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br

sábado, 1 de julho de 2023

insumos da memória



Não foi o deus do alto da matriz
quem deu asas a minha imaginação
nem foi o padre Bomfim
(com sua mão branca de pelos escuros
que me obrigavam a beijar
quando ele apontava no começo da rua)
muito menos o padre Irismar
(com seu rosto largo de pele vermelha
que me abrigava o olhar
quando desapontava no fim da rua)
não foram eles
a quem nunca deixei meus pecados
atravessarem as treliças do confessionário.
Pecados: pecados: pecados:
os seios
das tias de perto
que o menino via
refletidos no espelho do provador
as coxas
das cutruvias de longe
que o menino ouvia
espelhadas no reflexo dos homens
e mentia que a culpa-minha-máxima-culpa
era ter fabulado para a avó
e isso não se faz
seja a última vez
e tomem intermináveis
três pais-nossos deles
três ave-marias minhas
:
ato de contrição cabisbaixo
genuflexo
postulado
em frente aos gessos santificados
e seus olhinhos punitivos.
Não, não foram eles
seres comuns de batinas pretas
atravessadores de minha fé
não foram
foram as mãos dadas com Drummond
as folhas finas da Seleções
as curiosidades do Capivarol
foram as fitas do cine Poty
as canções da radiadora
a Hora do Brasil nas válvulas do ABC
foram as notícias do tio da capital
as conversas na calçada alta
os trancosos da prima gorda
foi o olhar sem fim de tanto imaginar
que me deu asas
sobre os telhados
os algodões
as carnaúbas
e me fez ver o mar.
- Fragmento de Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br