Foto: Acervo Jogos Florais, site de crítica e poesia, 2019
Em 2018, dias após o resultado das eleições que deu vitória à alma-sebosa-inominável, eu olhava pela janela um céu cinzento. Era um sábado à tarde, e parecia que o ar incorporava a gosma e asco que aquele sujeito representava. Lembrei da frase de Millor Fernandes, na verdade um trecho, extraído do verbete Arqueologia, do volumoso Millôr definitivo: a bíblia do caos, 1994: “...o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás. Se preferem.”. Os dois lados latitudinais no tempo foram preferíveis e aplicáveis, distópico eu que estava.
Fui à estante e na prateleira de poesia peguei aleatoriamente um livro para fugir daquela tristeza ou me confortar ou me esperançar ou sei-lá-o-quê. E o acaso – se acaso existe – escolheu Cabeça de homem, 1991, de Armando Freitas Filho, que partiu hoje aos 84 anos.
Seguindo o ritmo fortuito na companhia de uma ótima cabeça como a de Armando Freitas, abri na página com o poema Sem acessórios nem som. Li ali mesmo, em pé, como num ofertório, em voz cúmplice com o poeta. Ao término, tudo tinha a ver com o que eu estava sentido diante do caos e das bíblias que se anunciavam para os próximos quatro anos. Sentei-me à janela e li novamente, agora em voz alta, sem acessórios, somente o som da minha perplexidade ao ver a que ponto tínhamos chegado naquela eleição:
Escrever só para me livrar
de escrever.
Escrever sem ver, com riscos
sentindo falta dos acompanhamentos
com as mesmas lesmas
e figuras sem força de expressão.
Mas tudo desafina:
o pensamento pesa
tanto quanto o corpo
enquanto corto os conectivos
corto as palavras rentes
com tesoura de jardim
cega e bruta
com facão de mato.
Mas a marca deste corte
tem que ficar
nas palavras que sobraram.
Qualquer coisa do que desapareceu
continuou nas margens, nos talos
no atalho aberto a talhe de foice
no caminho de rato.
Grato por toda sua poesia, Armando, em seus livros que agora contemplo como devoto nas prateleiras da estante, esses passadiços horizontais em que se guardam dorsos verticais de tempo. “O pensamento pesa / tanto quanto o corpo” com sua ausência.
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