sábado, 29 de outubro de 2005

vertical

foto Christian Coiqny

O que existem são os meus olhos
numa dimensão
onde os meus sonhos não frustrem os meus pés.
Porque existem os meus pés
e a terra entranhada
e a canção seca dos homens.

Joguei-me do fundo de todo lugar distante
que deu nesta rua abismal.

Das raízes dos dedos dos pés
trago flores nas mãos
e segredo e cuidado.
Não tenho amor platônico pela vida:
nasço e morro exatamente hoje.
Sou marinheiro que parte:
cada dia é um porto que fica.

Ameaçam-me atear fogo
às vestes e às paixões
se eu não calo o canto
se eu não sigo as setas
se eu não cesso os beijos
isso
quando mais ardem
dentro e fora de mim
as vestes e as paixões.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

sexta-feira, 28 de outubro de 2005

mímica

foto Bogdan Jarocki


Os gestos lentos das mãos
somem com as máscaras no rosto
dia
após
dia:
até nada mais restar
sobre os ossos da face.

O destino das vértebras
sabe dele o chão

e
dos pensamentos
fica nos outros
o que passou pelo coração.

(do livro “Poesia provisória”)

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

desmontando as tardes

foto Mario Di Biasi

Eu podia ver o circo da janela do terceiro andar. Ali defronte, no terreno por onde os cachorros circulavam. Nunca desci nas tardes de sábado e manhãs de domingo para assistir a uma das sessões anunciadas no serviço de som que arranhava os ouvidos. Não porque era um circo pequeno: o que eu gostava mesmo era ver da janela do terceiro andar.
Um dia começaram a desmontar o circo. Foi quando me lembrei que dias antes anunciaram a última semana com atrações imperdíveis. Desmontavam o circo e desfaziam-se também minhas chances de assistir alguma apresentação se eu mudasse de idéia e descesse as escadas rumo à bilheteria. Da janela acompanhei por quase o dia todo o circo se resumindo a uns poucos caminhões velhos amontoados de tábuas, lonas, grades... e pessoas sonâmbulas sob o sol de segunda-feira.
Minhas tardes passaram a ser mais solitárias no retângulo da janela: não me importava o espetáculo, o que depois aconteceria à noite no picadeiro: o que me segurava os olhos era a vida ao redor da lona suspensa. Eram os artistas sem suas roupas de artistas, as pessoas comuns vivendo na temporalidade dos trailers, no improviso dos lares. Eram os animais tornados comuns na pouca extensão das jaulas. O melhor era aquele espetáculo, que me extasiava e incomodava, visto do meu camarote especial da janela do terceiro andar, tão longe e tão perto.
O circo foi embora e o melhor poderia ter sido mesmo partir: viajar sem ter um passado nos álbuns, ou um futuro agendado. Viajar tendo sempre só o presente que dura algumas semanas, poucas vezes uns meses, nunca muitos anos. Viajar na busca eterna do presente.
As estacas não criam raízes no chão da cidade.

(do livro "Outras prosas")

quarta-feira, 26 de outubro de 2005

ventania

foto Michael Kenna

O vento forte da vida
assanha os meus cabelos
molda o rosto
apaga os passos.

Mas

a minha existência
não se limita ao tamanho do corpo:
tenho todo um rosário de dias
e amores que estendem os braços
como se fossem mágicos,
e olhos que atravessam o mar
como se fossem pássaros.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

segunda-feira, 24 de outubro de 2005

persona grata

foto Farrokh Chothia
Gratifica-me ver teus olhos:
pássaros castanhos
que voam longe de mim.

Gratifica-me ver teu rosto:
moldura morena
que se guarda longe de mim.

Gratifica-me ouvir tua voz:
teclas de piano
que tocam longe de mim.

Gratifica-me teu jeito de andar:
ave-elegante
que passeia longe de mim.

Gratifica-me sentir tuas mãos:
gestos de plumas
se chegassem perto de mim.

(do livro “Poesia provisória")

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

medida

foto Jean-Sebastien Monzani

Caberão no poema
quando
soltos,
os beijos


quando
largos,
os abraços

quando
estradas,
os passos
?


(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 8 de outubro de 2005

presença

foto Cig Harvey

Vivo em ti
todos os momentos de mim.

(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

per si

foto Alberto Monteiro

Não quero teu verso enteado
na minha poesia.
Não se meta onde é chamado.
Faça de conta
que não escuta os meus apelos
e me deixe encontrar
esse endereço errado.

Quero meu desencanto legítimo
e esse beijo desfazendo a azia.

Não me venha com tradução simultânea
para música que me castiga.
Não me meta onde sou cantado.
Faça de conta
que não entende esse estrangeiro
e me deixe desencontrar
esse futuro passado.

Quero o ronco do meu íntimo
e este coração que a alma mastiga.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

argumentos

foto Alberto Monteiro

Basta eu estar vivo
para que eu possa me procurar.

Para que
me baste vivo
ando abrindo os olhos
para enfrentar as esquinas,
me armando
de argumentos
para me manter
vivo
sob as novidades que invento,
de algumas definições
para essas
manhãs
de sóis que espero,
de alguns lenços
para essa
saudade
do rosto que guardo,
de algumas flores
para esse
amor
que a cada dia é forte,
de algumas irreverências
para essas
ordens
gerais sobre a cidade,
de algumas roupas
para esse
frio
nos ossos da alma,
de alguns papéis
para essas
cartas
que nunca respondem.

Basta eu estar vivo
para que me possa
carregar.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

sábado, 1 de outubro de 2005

janeiros

foto Maurício Rolo


A cidade.
O que é esta cidade, nova,
senão o meu berço desfeito em outras paredes?
o que é esta distância
(medida a olho e lágrima)
senão o tamanho que me separa do riso
e da dúvida?

Fazer desta casa
:os mesmos tijolos de antes

os parentes seguiram no tempo
envelheceram
e desfolharam os janeiros no quintal
a casa encolheu suas paredes
feito as rugas na pele dos avós

as paredes envelheceram no tempo
seguiram
e encolheram os janeiros no quintal
a casa desfolhou seus parentes
feito as rugas na pele dos avós

fazer desta casa
:os mesmos tijolos de ontem.
(do livro "Trem da memória")