quinta-feira, 27 de outubro de 2005

desmontando as tardes

foto Mario Di Biasi

Eu podia ver o circo da janela do terceiro andar. Ali defronte, no terreno por onde os cachorros circulavam. Nunca desci nas tardes de sábado e manhãs de domingo para assistir a uma das sessões anunciadas no serviço de som que arranhava os ouvidos. Não porque era um circo pequeno: o que eu gostava mesmo era ver da janela do terceiro andar.
Um dia começaram a desmontar o circo. Foi quando me lembrei que dias antes anunciaram a última semana com atrações imperdíveis. Desmontavam o circo e desfaziam-se também minhas chances de assistir alguma apresentação se eu mudasse de idéia e descesse as escadas rumo à bilheteria. Da janela acompanhei por quase o dia todo o circo se resumindo a uns poucos caminhões velhos amontoados de tábuas, lonas, grades... e pessoas sonâmbulas sob o sol de segunda-feira.
Minhas tardes passaram a ser mais solitárias no retângulo da janela: não me importava o espetáculo, o que depois aconteceria à noite no picadeiro: o que me segurava os olhos era a vida ao redor da lona suspensa. Eram os artistas sem suas roupas de artistas, as pessoas comuns vivendo na temporalidade dos trailers, no improviso dos lares. Eram os animais tornados comuns na pouca extensão das jaulas. O melhor era aquele espetáculo, que me extasiava e incomodava, visto do meu camarote especial da janela do terceiro andar, tão longe e tão perto.
O circo foi embora e o melhor poderia ter sido mesmo partir: viajar sem ter um passado nos álbuns, ou um futuro agendado. Viajar tendo sempre só o presente que dura algumas semanas, poucas vezes uns meses, nunca muitos anos. Viajar na busca eterna do presente.
As estacas não criam raízes no chão da cidade.

(do livro "Outras prosas")

2 comentários:

Claudio Eugenio Luz disse...

Além de poeta, quem diria, também proseador. Nirton, uma bela e terna viagem através dos sentidos, dos olhares que nunca se cansam de causar espantos. Da janela do terceiro andar, quanto deslumbramento pelo burburinho, pela mistica ao redor do dia-a-dia de um circo.Na verdade, as estacas criam raízes apenas nessas narrativas, na memória, nos sonhos e na vã temporalidade do momento exato de sua captura - lá mesmo, onde o olhar vislubra a eternidade.

..hábraços

Kimu disse...

As estacas não criam raízes mas deixam marcas. Texto que dá uma beliscada demorada no coração. E delicoso de ler. Abs.