quinta-feira, 22 de julho de 2021

o mapa do coração

Nos demais – eu sei,
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio, no peito.
Comigo, a anatomia ficou louca. 
                                                 
Como diz o título do ótimo artigo de Larissa Drigo Agostinho, mestra e doutora em literatura, publicado na Folha de São Paulo em 16 de agosto de 2019, “Maiakovski cantava o amor como quem escrevia a revolução.”
O texto analisa, por ocasião do relançamento de Sobre isto, pela Editora 34, o livro-poema que Vladimir Maiakovski escreveu em estado de dilaceramento do coração, recluso em seu pequeno apartamento em Moscou, entre os angustiantes meses de dezembro de 1922 a fevereiro do ano seguinte. Ele se separara de Lília Brack, seu grande amor, depois de uma grave discussão, quando se viu ferido justo na garganta pela flecha preta do ciúme, como diz Caetano em sua caudalosa canção. Tudo sempre esbarra embriagado de seu lume.
“Sem você eu paro de existir”, escreveu o poeta em uma carta à amada concordando com o pacto de silêncio e distanciamento entre ambos. E partiu para o exílio entre quatro paredes. Político e lírico ao mesmo tempo, Maiakovski entregou-se a esse livro na mesma proporção que se entregava a uma causa do mundo. Se odiava a mesmice da vida burguesa, a inércia e a imobilidade, como aponta Larissa Drigo em seu artigo, o poeta canta e desencanta o amor porque esse é também doído e corroído pela miséria de todos os dias. Morto em 1930, desfazendo-se em ato extremo, aos 36 anos, Maiakovski considerava o livro sobre isto de graça e sortilégios do amor sua melhor obra. "Quero viver até o fim o que me cabe!", preconizou em verso-lápide no poema.
Sobre isto inspirou Caetano Veloso a compor O amor, fragmento adaptado, gravado pela interpretação magnífica de Gal Gosta no disco Fantasia, 1981. Nos versos mais cortantes Maiakovski pede que “Ressuscita-me, / nem que seja só porque te esperava / como um poeta, / repelindo o absurdo quotidiano!”, ao que o baiano arrematou com um risco de esperança, “Ressuscita-me ainda que mais não seja / porque sou poeta / e ansiava o futuro”.
Entre o mundo lá fora e o quarto cá dentro, entre as causas de dores externas e os causos de horrores internos, entre os amores e tantos outros precipícios, entre o cubofuturismo russo e o barroco recôncavo de Santo Amaro, os poetas auscultam os corações dos poetas.
O trecho no início da postagem é do poema Adultos, que Maiakovski escreveu antes, publicado em Antologia poética por volta de 1922. Mas o mapa do coração é o mesmo, sempre. O mesmo domicílio no mesmo peito. A anatomia ficou louca, como mostra abaixo a reprodução de um postal português de 1904, com relevo em almofada, postado por um amante a bordo do navio Congo, para que a amada além-mar pudesse apalpar a geografia da saudade ao recebê-lo.
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Texto, com adaptações para esta postagem, inserido num capítulo do meu livro ©Crônicas do Olhar, Editora Radiadora.

sábado, 17 de julho de 2021

a voz de Billie


Hoje, 62 anos de morte da grande cantora Bille Holiday, respostagem do texto incluído num capítulo do meu livro ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela Editora Radiadora.

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A VOZ DE BILLIE
“Southern trees bear strange fruit / Blood on the leaves and blood at the root / Black bodies swinging in the southern breeze / Strange fruit hanging from the poplar trees...”
- Versos iniciais da canção Strange fruit que a cantora Billie Holiday cristalizou numa interpretação lancinante, extraída vagarosamente de cada recanto onde o coração arfava cada palavra. A letra é um dos hinos mais doídos sobre o racismo nos Estados Unidos, considerada a primeira canção de protesto, mais explicitamente sobre o linchamento de negros.
Numa tradução livre, tentando aqui alcançar a essência da composição, Billie fala das árvores do sul que produzem uma fruta estranha, penduradas nos álamos, que derramam sangue em suas folhas e nas raízes. A referência é direta, o sentido mais do que alegórico: o grafismo nítido dos corpos de negros enforcados, balançando na brisa do sul.
De autoria do judeu branco Abel Meeropol, poeta e professor num colégio no Bronx, foi apresentada a Billie em 1939, no Cafe Society, um bar no porão de um prédio em Greenwich Village. A cantora ouviu e na mesma noite cantou. O impacto foi tão grande que por meses seguintes Billie ia ao local somente para interpretar Strange fruit.
Sua presença magnetizante no pequeno palco silenciava a plateia. Até os garçons paravam, evitando qualquer barulho, numa preparação de ambientação sacra. As luzes diminuíam, um único facho no rosto da cantora. Aquele pequeno universo subterrâneo tornava-se um útero onde pulsavam o lamento e a revolta contra a violência racial. Em um momento da letra, Billie Holiday torcia a boca, desenhando a expressão de rosto esganado numa árvore. Cantava e saía discretamente como entrava, e ia embora ouvindo os aplausos da calçada.
Em 2012 foi lançado o livro Strange fruit - a biografia de uma canção, de David Margolick, onde relata toda a história da emblemática composição.
Daquela data até os anos 2000, quase 100 versões foram gravadas de Strange fruit, de Carmen McRae a Nina Simone, de Diana Ross a Cocteau Twins, de Blue Spirit Blues a Sting, de Wynton Marsalis Quintet a Tori Amos, mas nenhuma tem os componentes de indignação e resistência tão genuínos como a anímica e elegíaca interpretação de Billie Holiday. Como disse William Duffy, coautor da biografia Lady Sings the Blues, 1959, “Billie não canta músicas; ela as transforma".
O que caracteriza o estilo de Billie Holiday é justamente o âmago da execução de cada nota em sua voz. A medula da alma na expressão melódica. Sua conturbada vida parece desfolhar-se em cada faixa dos quase 50 discos gravados, em estúdio e ao vivo.
Quando Billie nasceu, seu pai, um tocador de banjo, tinha apenas quinze anos de idade e sua mãe não mais do que treze. Ele abandonou a família, a mãe sumia nas noites, deixava a filha bebê com parentes. Negra, pobre, desamparada, a garota amargou infortúnios logo cedo. Foi violentada aos dez anos de idade por um vizinho. Internou-se em casa de correção, lavou chão de prostíbulo, e virou prostituta aos catorze anos. Isso na Nova York dos anos 20.
Na década seguinte começou como cantora, quando foi descoberta por um pianista em um bar do Harlem. Sua voz conquistou nomes como Benny Goodman, Count Basie, Artie Shaw, Duke Ellington e Louis Armstrong. Fez concertos com todos eles.
Nos anos 40, Billie entrou numa de ruim para pior. Relações amorosas humilhantes, agredida em três casamentos, surtos de depressão por não poder engravidar, descontrole dos rendimentos em seus shows, enganada por sócios, ludibriada por empresários.
Internada no começo de 1959 com agravamento de cirrose hepática, insuficiência cardíaca e edema pulmonar, faleceu meses depois, no final da tarde de 17 de julho.
Tinha 44 anos, dez quilos a menos, e o olhar triste no teto do quarto.
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Foto ilustrativa para esta postagem: Dennis Stock, 1958.
©Steven Kasher Gallery

domingo, 11 de julho de 2021

poesia nos bastidores


O estender do mar é como o impossível:
o lado de cá
é
sempre
o infinito do lado de lá.

E entender de amar é como o impossível:
o meu lado de cá
é
sempre
o infinito do teu lado de lá.

Simetria, do meu livro Poesia provisória, Editora Radiadora, 2019.

Uma conversa hoje com o poeta Mauro Rocha, de Brasília, sobre os bastidores do meu fazer poético nas letras e no cinema.

domingo, 4 de julho de 2021

o doce bárbaro


"Panaméricas de Áfricas utópicas, túmulo do samba / mais possível novo quilombo de Zumbi”...

“Maurício Lucila Gildásio Ivonete Agrippino Gracinha Zezé / gente espelho da vida, doce mistério”...
Nesses dois versos, respectivamente das músicas Sampa e Gente, de Caetano Veloso, há homenagens explícitas ao escritor, dramaturgo e cineasta José Agrippino de Paula. Citado no segundo verso, é autor do livro PanAmérica no primeiro, publicado em 1967, que praticamente deu uma guinada diferente na literatura brasileira naquela década de mudanças pelo mundo todo. O livro de forte incidência pop, ou para ser mais preciso àqueles tempos, representativamente beat, narra as maluquices e casos amorosos de um cineasta enquanto tenta filmar nada menos nada mais do que A Bíblia Sagrada, colocando no elenco nomes como John Wayne, Marilyn Monroe, Burt Lancaster, Charles De Gaulle, entre outros, e eles próprios interferindo na construção das cenas. Viagem lisérgica total, situemos assim. Ou não. No mínimo, o suprassumo da estética tropicalista. Aliás, sua influência sobre o movimento cultural é inegável; Jorge Mautner lembra que "quando ele falava, todos silenciavam".
Essa mistura desvairada em sua criação, com personagens reais da cultura norte-americana, é, na verdade, uma crítica muito bem armada sobre a sociedade de consumo. Caetano Veloso dizia que o livro parecia a Ilíada, do poeta grego Homero, narrada por Max Cavalera, ex-vocalista do Sepultura. É uma boa semelhança entre coisas diferentes. O fato é que Agrippino soube como pouquíssimos captar – e viver na pele – o século XX no que ele teve de mais representativo no ser humano e seus signos.
PanAmérica foi reeditado em 2001, pela Papagaio Editora, que relançou em 2005 o primeiro livro de Agrippino, Lugar público, originalmente publicado em 1965. Houve uma proposta da editora, mas não concretizada, de reunir toda a obra literária desse mito underground, que compreende contos, ensaios, peças de teatro, roteiro de shows musicais, romances inéditos e textos dispersos.
Agrippino foi diretor do muito comentado e pouco visto Hitler Terceiro Mundo, seu único longa-metragem, de 1968, um dos mais radicais do cinema alternativo que já vi. Gosta-se ou não do filme ou do gênero, mas não dá para ficar indiferente a um trabalho que marcou época e influenciou outros diretores. O não menos original Carlos Reichenbach dizia que suas obras, "deflagraram uma revolução mental e sensível na minha geração". Os curtas rodados em Super-8 já traziam a linguagem inovadora de um artista inquieto e visionário.
Em 1976 Gilberto Gil musicou alguns trechos do livro PanAmérica e inseriu na canção Eu e ela estávamos ali encostados na parede, gravada no antológico Doces Bárbaros – Ao Vivo.
Agrippino vivia em seu exílio em Embu das Artes, na Grande São Paulo, desde o começo dos anos 80, esquecido do mundo, que tanto observou. Desde então teve uma vida difícil, principalmente depois da morte de sua filha, batizada Manhã, em acidente de carro em 1992, que teve com a bailarina e coreógrafa Maria Esther Stockler, de quem estava há muito tempo separado, mas nunca a esqueceu, “Maria Esther está lá na avenida Angélica falando com Caetano. Ela gosta de sair”, delirava.