sábado, 17 de julho de 2021

a voz de Billie


Hoje, 62 anos de morte da grande cantora Bille Holiday, respostagem do texto incluído num capítulo do meu livro ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela Editora Radiadora.

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A VOZ DE BILLIE
“Southern trees bear strange fruit / Blood on the leaves and blood at the root / Black bodies swinging in the southern breeze / Strange fruit hanging from the poplar trees...”
- Versos iniciais da canção Strange fruit que a cantora Billie Holiday cristalizou numa interpretação lancinante, extraída vagarosamente de cada recanto onde o coração arfava cada palavra. A letra é um dos hinos mais doídos sobre o racismo nos Estados Unidos, considerada a primeira canção de protesto, mais explicitamente sobre o linchamento de negros.
Numa tradução livre, tentando aqui alcançar a essência da composição, Billie fala das árvores do sul que produzem uma fruta estranha, penduradas nos álamos, que derramam sangue em suas folhas e nas raízes. A referência é direta, o sentido mais do que alegórico: o grafismo nítido dos corpos de negros enforcados, balançando na brisa do sul.
De autoria do judeu branco Abel Meeropol, poeta e professor num colégio no Bronx, foi apresentada a Billie em 1939, no Cafe Society, um bar no porão de um prédio em Greenwich Village. A cantora ouviu e na mesma noite cantou. O impacto foi tão grande que por meses seguintes Billie ia ao local somente para interpretar Strange fruit.
Sua presença magnetizante no pequeno palco silenciava a plateia. Até os garçons paravam, evitando qualquer barulho, numa preparação de ambientação sacra. As luzes diminuíam, um único facho no rosto da cantora. Aquele pequeno universo subterrâneo tornava-se um útero onde pulsavam o lamento e a revolta contra a violência racial. Em um momento da letra, Billie Holiday torcia a boca, desenhando a expressão de rosto esganado numa árvore. Cantava e saía discretamente como entrava, e ia embora ouvindo os aplausos da calçada.
Em 2012 foi lançado o livro Strange fruit - a biografia de uma canção, de David Margolick, onde relata toda a história da emblemática composição.
Daquela data até os anos 2000, quase 100 versões foram gravadas de Strange fruit, de Carmen McRae a Nina Simone, de Diana Ross a Cocteau Twins, de Blue Spirit Blues a Sting, de Wynton Marsalis Quintet a Tori Amos, mas nenhuma tem os componentes de indignação e resistência tão genuínos como a anímica e elegíaca interpretação de Billie Holiday. Como disse William Duffy, coautor da biografia Lady Sings the Blues, 1959, “Billie não canta músicas; ela as transforma".
O que caracteriza o estilo de Billie Holiday é justamente o âmago da execução de cada nota em sua voz. A medula da alma na expressão melódica. Sua conturbada vida parece desfolhar-se em cada faixa dos quase 50 discos gravados, em estúdio e ao vivo.
Quando Billie nasceu, seu pai, um tocador de banjo, tinha apenas quinze anos de idade e sua mãe não mais do que treze. Ele abandonou a família, a mãe sumia nas noites, deixava a filha bebê com parentes. Negra, pobre, desamparada, a garota amargou infortúnios logo cedo. Foi violentada aos dez anos de idade por um vizinho. Internou-se em casa de correção, lavou chão de prostíbulo, e virou prostituta aos catorze anos. Isso na Nova York dos anos 20.
Na década seguinte começou como cantora, quando foi descoberta por um pianista em um bar do Harlem. Sua voz conquistou nomes como Benny Goodman, Count Basie, Artie Shaw, Duke Ellington e Louis Armstrong. Fez concertos com todos eles.
Nos anos 40, Billie entrou numa de ruim para pior. Relações amorosas humilhantes, agredida em três casamentos, surtos de depressão por não poder engravidar, descontrole dos rendimentos em seus shows, enganada por sócios, ludibriada por empresários.
Internada no começo de 1959 com agravamento de cirrose hepática, insuficiência cardíaca e edema pulmonar, faleceu meses depois, no final da tarde de 17 de julho.
Tinha 44 anos, dez quilos a menos, e o olhar triste no teto do quarto.
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Foto ilustrativa para esta postagem: Dennis Stock, 1958.
©Steven Kasher Gallery

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