domingo, 4 de julho de 2021

o doce bárbaro


"Panaméricas de Áfricas utópicas, túmulo do samba / mais possível novo quilombo de Zumbi”...

“Maurício Lucila Gildásio Ivonete Agrippino Gracinha Zezé / gente espelho da vida, doce mistério”...
Nesses dois versos, respectivamente das músicas Sampa e Gente, de Caetano Veloso, há homenagens explícitas ao escritor, dramaturgo e cineasta José Agrippino de Paula. Citado no segundo verso, é autor do livro PanAmérica no primeiro, publicado em 1967, que praticamente deu uma guinada diferente na literatura brasileira naquela década de mudanças pelo mundo todo. O livro de forte incidência pop, ou para ser mais preciso àqueles tempos, representativamente beat, narra as maluquices e casos amorosos de um cineasta enquanto tenta filmar nada menos nada mais do que A Bíblia Sagrada, colocando no elenco nomes como John Wayne, Marilyn Monroe, Burt Lancaster, Charles De Gaulle, entre outros, e eles próprios interferindo na construção das cenas. Viagem lisérgica total, situemos assim. Ou não. No mínimo, o suprassumo da estética tropicalista. Aliás, sua influência sobre o movimento cultural é inegável; Jorge Mautner lembra que "quando ele falava, todos silenciavam".
Essa mistura desvairada em sua criação, com personagens reais da cultura norte-americana, é, na verdade, uma crítica muito bem armada sobre a sociedade de consumo. Caetano Veloso dizia que o livro parecia a Ilíada, do poeta grego Homero, narrada por Max Cavalera, ex-vocalista do Sepultura. É uma boa semelhança entre coisas diferentes. O fato é que Agrippino soube como pouquíssimos captar – e viver na pele – o século XX no que ele teve de mais representativo no ser humano e seus signos.
PanAmérica foi reeditado em 2001, pela Papagaio Editora, que relançou em 2005 o primeiro livro de Agrippino, Lugar público, originalmente publicado em 1965. Houve uma proposta da editora, mas não concretizada, de reunir toda a obra literária desse mito underground, que compreende contos, ensaios, peças de teatro, roteiro de shows musicais, romances inéditos e textos dispersos.
Agrippino foi diretor do muito comentado e pouco visto Hitler Terceiro Mundo, seu único longa-metragem, de 1968, um dos mais radicais do cinema alternativo que já vi. Gosta-se ou não do filme ou do gênero, mas não dá para ficar indiferente a um trabalho que marcou época e influenciou outros diretores. O não menos original Carlos Reichenbach dizia que suas obras, "deflagraram uma revolução mental e sensível na minha geração". Os curtas rodados em Super-8 já traziam a linguagem inovadora de um artista inquieto e visionário.
Em 1976 Gilberto Gil musicou alguns trechos do livro PanAmérica e inseriu na canção Eu e ela estávamos ali encostados na parede, gravada no antológico Doces Bárbaros – Ao Vivo.
Agrippino vivia em seu exílio em Embu das Artes, na Grande São Paulo, desde o começo dos anos 80, esquecido do mundo, que tanto observou. Desde então teve uma vida difícil, principalmente depois da morte de sua filha, batizada Manhã, em acidente de carro em 1992, que teve com a bailarina e coreógrafa Maria Esther Stockler, de quem estava há muito tempo separado, mas nunca a esqueceu, “Maria Esther está lá na avenida Angélica falando com Caetano. Ela gosta de sair”, delirava.

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