Não foi o deus do alto da matriz
quem deu asas a minha imaginação
nem foi o padre bomfim
(com sua mão branca de pelos escuros
quando ele apontava no começo da rua)
muito menos o padre irismar
(com seu rosto largo de pele vermelha
que me abrigava o olhar
quando desapontava no fim da rua)
não foram eles
a quem nunca deixei meus pecados
atravessarem as treliças do confessionário.
Pecados: pecados: pecados:
os seios
das tias de perto
que o menino via
refletidos no espelho do provador
as coxas
das cutruvias de longe
que o menino ouvia
espelhadas no reflexo dos homens
e mentia que a culpa-minha-máxima-culpa
era ter fabulado para a avó
e isso não se faz
seja a última vez
e tomem intermináveis
três pais-nossos deles
três ave-marias minhas
:
ato de contrição cabisbaixo
genuflexo
postulado
em frente aos gessos santificados
e seus olhinhos punitivos.
Não, não foram eles
seres comuns de batinas pretas
atravessadores de minha fé
não foram
foram as mãos dadas com drummond
as folhas finas da seleções
as curiosidades do capivarol
foram as fitas do cine poty
as canções da radiadora
a hora do brasil nas válvulas do abc
foram as notícias do tio da capital
as conversas na calçada alta
os trancosos da prima gorda
foi o olhar sem fim de tanto imaginar
que me deu asas sobre os telhados
os algodões
as carnaúbas
e me fez ver o mar.
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Trecho do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022) que será lido hoje no programa Sarau Brasil Atual, na Rádio Brasil Atual, São Paulo.
Apresentado pelo escritor e músico Sérgio Lima, produzido por Denise Sousa, estarei luxuosamente acompanhados da cantora e compositora paulista Regina Machado e do parceiro cantor e compositor pernambucano-cearense Charles Wellington.
Serão lidos também poemas do livro Poesia provisória, lançado em 2019 pela mesma editora.
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