segunda-feira, 14 de novembro de 2022

que trem é esse?


Não por acaso o cineasta e poeta Nirton Venancio realiza há alguns anos o filme Pessoal do Ceará – Lado A Lado B, registro da música cearense moderna, num trabalho solitário e de dedicação quase religiosa, num país onde impera a amnésia oficial. Sua ”matéria de memória” (alusão ao romance de Carlos Heitor Cony, faço eu) estende-se à poesia escrita, reunida no excelente Trem da memória, seu mais recente livro (Editora Radiadora, Fortaleza, 2022).

Esse trem não é da mesma conexão ferroviária do que apita, autoritário, na preocupação exclusivamente social da poesia de Solano Trindade, ou do singelo poema de Manuel Bandeira, enumerando o que seu olhar de passageiro elege da paisagem em movimento que se descortina da janela.
É uma poética transida de lembranças, como num caleidoscópio, ou melhor, num cinematógrafo, ou lanterna mágica, emendando na coladeira do tempo imagens esparsas que vão costurando uma narrativa testemunhada pelo poeta.
Opta pela simplicidade – a mesma encontrada nos pequenos vilarejos do Brasil - que nos remete aos poemas inaugurais dos primeiros dos nossos modernistas. Sem os artifícios gongóricos da Geração de 45, que reabriu as portas do Parnaso para suas medusas e apolos invadirem novamente a nossa literatura. No Nordeste não tem disso não!
“No quintal da grande casa
os verões passavam como nuvens
e sombreavam os gestos de menino
que se perdia na altura das formigas”
Teria escrito Graciliano Ramos em seu Infância (memórias, 1942), se mestre Graça descesse de seu agreste estado de espírito e se permitisse abrir o coração (e o verbo). Ou Manuel Bandeira, ainda pelas ladeiras do Recife.
“O nome do lugar está em mim
como topônimo neste poema
o logradouro onde me cabe...”
Associo à Itabira na parede de Drummond (“está em mim”); e o latifúndio (“que me cabe”) de João Cabral de Morte e vida Severina.
Esse trem poético de Nirton não para em nenhuma estação. Vai recolhendo da poesia brasileira e do cinema as referências que o seu inconsciente erudito e sensível sopra no seu ouvido. E retira de seu baú as joias da sua coroa particular e as expõe:
“focava sua luz neorrealista
no quintal em mim
para o dia que começava
no sertão sem fim”
Vejo logo a imagem do plano final de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber, com Othon Bastos levando pela mão Yoná Magalhães (Corisco e Rosa), correndo pelo sertão seco e "sem fim" com a trilha composta por Sérgio Ricardo.
Ou:
“Na tela de reboco,
esse recorte é o quadro que brilha mais
no meu cinema paradiso”
E vai declinando sua história – como um filme, autobiografia em forma de relato:
“Fortaleza seria logo além
da saudade do quintal de Ibiapaba
da lembrança da cancela na fazenda
da memória da casa amarela de oitão.”
E desagua nessa obra-prima de verso que reúne toda amorosa memória olfativa jamais descrita:
“o aroma de leite de rosas de minha mãe
(sempre gotas entre os seios e o coração)”.
Entre a herança das rimas dos cordéis do sertão e sob a sombra que a nossa antropofagia mastigou dos hai-kais orientais, ousa dizer que
“Cada verso me arreda.
Cada palavra me envereda”
Ao enveredarmos por essa viagem, como seu trem e serpente de chocalho sibilino e canto de sereia, dessas que surgem entre as pedras e os mandacarus das secas milenares e, hipnotizados pelos zóios da cobra verde de seus versos, nos ajoelhamos, gratos, com a consciência que essa poesia inoculada não tem cura. Nem nunca terá.
Nirton dedica as três últimas páginas de seu livro enumerando nomes e lugares – numa lista interminável, como os agradecimentos nos filmes brasileiros.
- Luiz Carlos Lacerda, cineasta e poeta (Rio de Janeiro)
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Em meados da década de 70, eu adolescente na capital cearense, vindo do interior, inocente, puro e besta, escrevendo escondido poemas e diários, vendo um filme atrás do outro, um dia saí fascinado de uma sessão no cine Diogo: “Mãos vazias”, primeiro longa de Luiz Carlos Lacerda. Aquele filme de narrativa irregular e ousado na sua postura e linguagem transgressora, deu uma sacudida em minha forma de ver cinema brasileiro. E tudo que eu queria era conhecer o diretor. E ser também cineasta.
Dando um salto no tempo, como numa elipse cinematográfica, porque a história é comprida, há mais de 30 anos proximidade e amizade se fizeram, mesmo com encontros esparsos.
Seu olhar sensível e afetuoso sobre Trem da memória é um prêmio na fortuna crítica do livro. Imensa gratidão pelo texto, caro amigo. Esse trem que o título indaga é o que leva a mesma estação dos que se querem bem. Abraço-te.

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