No final de 1982 o poeta Cacaso esteve em Fortaleza para participar de eventos literários.
Acompanhado do poeta Adriano Espínola e do ator de teatro Ximenes Prado, segui para o Colonial Hotel, onde estava hospedado, levando de presente o meu primeiro livro de poemas, Roteiro dos pássaros.
O que seria um encontro rápido, a conversa atravessou a tarde e encostou no começo da noite sob a brisa da Praia de Iracema.
Rosto juvenil nos seus 38 anos de idade, calça jeans, camiseta branca, chinelos de coro, cabelos longos e óculos de John Lennon, estávamos diante de um dos mais representativos nomes da chamada geração mimeógrafo, da poesia marginal, que agregava pensadores da escrita alternativa, como Chacal, Ana Cristina César, Geraldo Carneiro, Eudoro Augusto, Chico Alvim, Carlos Saldanha, e tantos outros que naquele terrível período da ditadura militar, da década de 70 aos vindouros esperançosos anos 80, articulavam movimentos artísticos em resistência e combate à repressão, mesclavam a alegria, a ironia e deboche criativos em suas obras.
Professor de Teoria Literária da PUC/RJ, Antônio Carlos de Brito, seu nome de batismo, era considerado o teórico daquele movimento de pensamento e desbunde, o que se revela tanto em livros de poesia quanto nos ensaios publicados em jornais e revistas.
Cacaso transitava com naturalidade no meio musical de um dos períodos mais inventivos e férteis da denominada MPB. Entre dezenas de parceiros que musicaram seus poemas, a mais constante foi a cantora e compositora Sueli Costa, que gravou em 1975 Dentro de mim mora um anjo, tema da novela Bravo, da Globo, e depois por Fafá de Belém, no disco Banho de cheiro, 1978.
No início de 1983 chegou ao meu endereço um exemplar do seu livro recém lançado. Na primeira página, uma carta escrita em papel fino por onde a luz atravessa e diminui as distâncias: “Meu caro Nirton, não esqueci da promessa que fiz de te enviar o meu ‘Mar de mineiro’...”, iniciava, com letra delicada e vertical. Lá pelo meio, entre relatos de viagens que estava fazendo, partilha afetuosamente: “Este ano quero ver se trabalho num livro de artigos e ensaios, coisas que publiquei na imprensa, revistas, e que agora quero reunir". Não deu tempo naquele ano nem nos seguintes. Um infarto no miocárdio o tirou de cena duas noites após o Natal de 1987.
Mar de mineiro, que se tornou seu último livro publicado, é de uma preciosidade de ver, pegar, ler e se encantar. As 224 páginas, em suave papel rústico que imita pergaminho, espraiam poemas em fontes itálicas, como manuscritos de um diário, entre ilustrações de pássaros, peixes, paisagens, e fotografias da infância e flagrantes de ruas. A beleza artesanal, com a pureza, coletividade e simplicidade de outros tempos, identifica a poesia, o poeta e a obra sem o padrão numérico de ISBN.
Cacaso tinha 43 anos quando partiu com o anjo que morava dentro dele.
Quando eu soube da notícia, lembrei-me de seu desejo manifestado na carta, que eu guardava no livro como um marcador especial. Naquele dia peguei o exemplar na estante e vi que, numa de minhas releituras, a folha ficou na página 37, onde tem o poema Máquina do tempo. Com saudade, li como um epitáfio:
"E com respeito àquele problema do
futuro acho que vou ficando por aqui..."