terça-feira, 17 de dezembro de 2024

os sonhos de Nélida


“Somos mentirosos de nascença, Breta. E fadados a verdades que nós mesmos não compreendemos. Como se nossas verdades saíssem da sucata, do ferro velho. Somos assim, habitantes de um cemitério de navios, revestidos de melancolia e ferrugem. Os únicos que se salvam desta oxidação são os artistas. Talvez porque iluminem parcialmente os nossos túneis, sem temor de enfrentar detritos, monstros, e formas estranhas sem nome, que Eulália chama de alma”.
- Fala de Madruga em A república dos sonhos, romance de Nélida Piñon, lançado em 1984, Troféu Associação Paulista de Críticos Teatrais e Prêmio PEN Clube do Brasil. A autora passou praticamente três anos trancada numa pensão em Congonhas, Minas Gerais, para escrevê-lo.
De sua vasta bibliografia, entre romances, crônicas, contos, memórias, infanto-juvenil e ensaios, esse foi o que mais me impressionou, pela fina elaboração técnica narrativa nas suas quase 800 páginas. Nélida, filha de emigrantes da Galícia, parte de suas lembranças de infância para reconstituir a história fictícia de uma família de imigrantes que aportam no Rio de Janeiro na virada do século passado. O livro é uma metáfora do Brasil.
Considero uma obra tão memorialista quanto os biográficos Coração andarilho”, O livro das horas e Uma furtiva lágrima, pois encontramos Nélida nas vidas dos dezesseis personagens que se entremeiam, recriando assim sua realidade a partir do próprio discurso. Não à toa, Nélida é um anagrama do prenome de seu avô, Daniel Cuiñas. O parágrafo que destaquei acima é um dos pontos reflexivos entre autora, personagens e obra.
Primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (1996 a 1997), Nélida Piñon faleceu no final da tarde de 17 de dezembro de 2022, um sábado, aos 88 anos, no leito de hospital em Portugal. ao lado de sua assessora e companheira de vida por 25 anos, a psicóloga Karla Vasconcelos, que lhe segurava a mão. Poucas horas antes, recebeu a visita de Fernanda Montenegro e Fernanda Torres. "Agora já posso ir embora", disse-lhes.
Seu corpo foi trazido para o sepultamento no São João Batista, Rio de Janeiro. De volta à América do Sul, à república dos seus sonhos, onde começou a escrever a história do patriarca Madruga.
Artistas como Nélida Piñon nos salvam dessa oxidação de melancolia e ferrugem, da verdade que nós mesmos não compreendemos.

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