sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

um ano mineiro



 No final de 1982 o poeta Cacaso esteve em Fortaleza para participar de eventos literários.

Acompanhado do poeta Adriano Espínola e do ator de teatro Ximenes Prado, segui para o Colonial Hotel, onde estava hospedado, levando de presente o meu primeiro livro de poemas, Roteiro dos pássaros.
Ao lado de sua namorada Rosa Emília, cantora e compositora baiana, Cacaso nos recebeu com um sorriso tímido, braços abertos e o coração ondulado de simpatia como as montanhas de suas Minas Gerais.
O que seria um encontro rápido, a conversa atravessou a tarde e encostou no começo da noite sob a brisa da Praia de Iracema.
Rosto juvenil nos seus 38 anos de idade, calça jeans, camiseta branca, chinelos de coro, cabelos longos e óculos de John Lennon, estávamos diante de um dos mais representativos nomes da chamada geração mimeógrafo, da poesia marginal, que agregava pensadores da escrita alternativa, como Chacal, Ana Cristina César, Geraldo Carneiro, Eudoro Augusto, Chico Alvim, Carlos Saldanha, e tantos outros que naquele terrível período da ditadura militar, da década de 70 aos vindouros esperançosos anos 80, articulavam movimentos artísticos em resistência e combate à repressão, mesclavam a alegria, a ironia e deboche criativos em suas obras.
Professor de Teoria Literária da PUC/RJ, Antônio Carlos de Brito, seu nome de batismo, era considerado o teórico daquele movimento de pensamento e desbunde, o que se revela tanto em livros de poesia quanto nos ensaios publicados em jornais e revistas.
Cacaso transitava com naturalidade no meio musical de um dos períodos mais inventivos e férteis da denominada MPB. Entre dezenas de parceiros que musicaram seus poemas, a mais constante foi a cantora e compositora Sueli Costa, que gravou em 1975 Dentro de mim mora um anjo, tema da novela Bravo, da Globo, e depois por Fafá de Belém, no disco Banho de cheiro, 1978.
No início de 1983 chegou ao meu endereço um exemplar do seu livro recém lançado. Na primeira página, uma carta escrita em papel fino por onde a luz atravessa e diminui as distâncias: “Meu caro Nirton, não esqueci da promessa que fiz de te enviar o meu ‘Mar de mineiro’...”, iniciava, com letra delicada e vertical. Lá pelo meio, entre relatos de viagens que estava fazendo, partilha afetuosamente: “Este ano quero ver se trabalho num livro de artigos e ensaios, coisas que publiquei na imprensa, revistas, e que agora quero reunir". Não deu tempo naquele ano nem nos seguintes. Um infarto no miocárdio o tirou de cena duas noites após o Natal de 1987.
Mar de mineiro, que se tornou seu último livro publicado, é de uma preciosidade de ver, pegar, ler e se encantar. As 224 páginas, em suave papel rústico que imita pergaminho, espraiam poemas em fontes itálicas, como manuscritos de um diário, entre ilustrações de pássaros, peixes, paisagens, e fotografias da infância e flagrantes de ruas. A beleza artesanal, com a pureza, coletividade e simplicidade de outros tempos, identifica a poesia, o poeta e a obra sem o padrão numérico de ISBN.
Cacaso tinha 43 anos quando partiu com o anjo que morava dentro dele.
Quando eu soube da notícia, lembrei-me de seu desejo manifestado na carta, que eu guardava no livro como um marcador especial. Naquele dia peguei o exemplar na estante e vi que, numa de minhas releituras, a folha ficou na página 37, onde tem o poema Máquina do tempo. Com saudade, li como um epitáfio:
"E com respeito àquele problema do
futuro acho que vou ficando por aqui..."

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

em Minas com o poeta



 

Em 23 de dezembro 2012 eu estava em Araxá, interior de Minas Gerais, quando li a notícia da morte do poeta alagoano Lêdo Ivo, aos 88 anos. Ousei um trocadilho infame desejando que fosse um ledo engano. E saí para andar e fotografar pelo verde da Estância do Barreiro, nas redondezas do Grande Hotel Termas.

Na caminhada silenciosa pela mata me deparei com as ruínas do Hotel Rádio. Na década de 1930 o prédio sofreu um incêndio. Consta que uma hóspede, em lua de mel, depois de encontrar o marido com a camareira, indignada e enfurecida, suicidou-se tocando fogo no quarto. Com a repercussão negativa, o hotel perdeu clientela e encerrou as atividades. O local voltou tempos depois como uma clínica de reabilitação e em 1960 definitivamente abandonado.
A vegetação tomou conta de todo o hotel. Raízes e troncos serpenteando nos corredores, alcançando as paredes, ocupando os quartos. Passei pela recepção, subi sob riscos para achar o local onde o fogo começara. O silêncio do tempo em volume reflexivo.
Desci e fiquei a admirar e fotografar a estranha beleza mumificada em verde que se renovava no orvalho de cada manhã.
Numa holografia da imaginação, vi os hóspedes que chegavam e saíam; o porteiro sorridente que dava passagem; o rapaz atencioso que carregava malas; o marido adúltero com o olhar oblíquo; a camareira enaltecida que disfarçava; a esposa traída riscando o fósforo.
Depois de fotografar alguns ângulos das ruínas, lembrei de um poema-prosa de Lêdo Ivo, A escada, publicado no livro Mar Oceano. Os versos analógicos tracejavam na minha cabeça como legenda para a foto digital. De volta ao quarto no Termas, procurei na Internet o poema. Cabia como epígrafe para minha visita ao fogo passional do passado, aos cômodos retorcidos do presente:
“Desde o início aboli a possibilidade de estar sendo conduzido para o Inferno ou o Paraíso, essas fictícias paragens finais que, não pertencendo à geografia terrestre, não se incluem entre os sítios prometidos aos meus passos futuros.”
Lêdo Ivo me acompanhou naquele dia. E não foi engano.

domingo, 22 de dezembro de 2024

Joe e a tempestade


No começo de 1969 o cantor e compositor Joe Cocker e sua The Grease Band viajaram da Inglaterra para os Estados Unidos para divulgar o primeiro disco lançado. Com a repercussão nos circuitos de pequenos festivais, de imediato o produtor Artie Kornfeld o convidou para o Woodstock Music & Art Fair, de 15 a 18 de agosto daquele ano, na região de uma distante e extensa fazenda de gado leiteiro, na cidade de Bethel, estado de Nova York.
Agendou a apresentação de Cocker para o último dia, um domingo como hoje, abrindo a programação, que fecharia com Jimi Hendrix, o maior cachê do evento, 18.000 dólares. O cantor inglês e sua banda receberam 1.375.
Joe Cocker começou seu repertório cantando faixas do disco e alguns covers de Bob Dylan, Pete Dello e Ray Charles. A plateia aplaudia sem muito entusiasmo, ainda ressacada do dia e noite anteriores, que teve Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, Santana, Jefferson Airplane...
Sempre que leio sobre isso e o revejo no filme Woodstock, imagino que deve ter pensado: “É hora de mudar isso”, antes de falar sobre a próxima e última música do setlist de 13: With a little help from my friends, composta por John Lennon e Paul McCartney, do álbum dos Beatles de 1967, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, na voz de Ringo Star.
“Simplesmente alucinante, transformou totalmente em um hino do soul, fiquei eternamente grato a ele”, disse Paul ao ouvir a gravação no disco, que tem a guitarra e arranjo de Jimmy Page.
A apresentação naquela tarde no palco do Woodstock foi ainda mais alucinante. Durante oito minutos Joe Cocker magnetizou a multidão com sua voz gutural, seus movimentos espasmódicos, sua performance energética. A personalíssima versão da canção superou a de Richie Havens, que abriu o Festival dois dias antes, e vestindo uma longa bata alaranjada, cantou só com violão e sentado num banquinho.
Ao final Cocker agradeceu ao público extasiado e retirou-se. Não houve tempo de gritarem por sua volta. Uma grande tempestade começou nos contornos da fazenda. Em poucos minutos ventos fortes trouxeram muita chuva, inundando e encharcando de lama o chão de Woodstock. Os céus, como em reverência, estavam só aguardando Joe terminar. Ninguém se feriu, as enormes torres de iluminação oscilaram e resistiram, muitos curtiram, outros, compreensivelmente assustados, foram embora.
A partir daquele dia Joe Cocker não parou. Gravou quase 30 discos e fez shows pelo mundo todo. Esteve no Brasil em 1977, em 1991 no Rock in Rio, 2012 em Sâo Paulo, Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre. Sempre magnetizante vê-lo ao vivo. Com sua postura tônica no palco e sua voz grave, era doce na mesma proporção quando, em entrevistas que assisti, falava das origens das canções, da infância de família operária, e como conseguiu superar os problemas com álcool e drogas nos anos 70.
Morava com a esposa em um rancho perto de montanhas no Colorado, Estados Unidos, quando faleceu aos 70 anos na manhã de 22 de dezembro de 2014. Não resistiu à tempestade de um câncer no pulmão.
Acima, fotograma do documentário Woodstock, de Michael Wadleigh, 1970. 

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

os sonhos de Nélida


“Somos mentirosos de nascença, Breta. E fadados a verdades que nós mesmos não compreendemos. Como se nossas verdades saíssem da sucata, do ferro velho. Somos assim, habitantes de um cemitério de navios, revestidos de melancolia e ferrugem. Os únicos que se salvam desta oxidação são os artistas. Talvez porque iluminem parcialmente os nossos túneis, sem temor de enfrentar detritos, monstros, e formas estranhas sem nome, que Eulália chama de alma”.
- Fala de Madruga em A república dos sonhos, romance de Nélida Piñon, lançado em 1984, Troféu Associação Paulista de Críticos Teatrais e Prêmio PEN Clube do Brasil. A autora passou praticamente três anos trancada numa pensão em Congonhas, Minas Gerais, para escrevê-lo.
De sua vasta bibliografia, entre romances, crônicas, contos, memórias, infanto-juvenil e ensaios, esse foi o que mais me impressionou, pela fina elaboração técnica narrativa nas suas quase 800 páginas. Nélida, filha de emigrantes da Galícia, parte de suas lembranças de infância para reconstituir a história fictícia de uma família de imigrantes que aportam no Rio de Janeiro na virada do século passado. O livro é uma metáfora do Brasil.
Considero uma obra tão memorialista quanto os biográficos Coração andarilho”, O livro das horas e Uma furtiva lágrima, pois encontramos Nélida nas vidas dos dezesseis personagens que se entremeiam, recriando assim sua realidade a partir do próprio discurso. Não à toa, Nélida é um anagrama do prenome de seu avô, Daniel Cuiñas. O parágrafo que destaquei acima é um dos pontos reflexivos entre autora, personagens e obra.
Primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (1996 a 1997), Nélida Piñon faleceu no final da tarde de 17 de dezembro de 2022, um sábado, aos 88 anos, no leito de hospital em Portugal. ao lado de sua assessora e companheira de vida por 25 anos, a psicóloga Karla Vasconcelos, que lhe segurava a mão. Poucas horas antes, recebeu a visita de Fernanda Montenegro e Fernanda Torres. "Agora já posso ir embora", disse-lhes.
Seu corpo foi trazido para o sepultamento no São João Batista, Rio de Janeiro. De volta à América do Sul, à república dos seus sonhos, onde começou a escrever a história do patriarca Madruga.
Artistas como Nélida Piñon nos salvam dessa oxidação de melancolia e ferrugem, da verdade que nós mesmos não compreendemos.

domingo, 15 de dezembro de 2024

o trem em Maracanaú


O Trem chega às mãos do poeta Fred Cavalcante na estação de Maracanaú, Ceará.


"Puxo os vagões da memória até quando?

O poema não acaba nunca.

O que escrevo são incompletudes"

Trem da memória (Editora Radiadora, 2022)

domingo, 8 de dezembro de 2024

o trem no Delta do Parnaíba


Durante três dias, de 4 a 6 de dezembro, o 9º Salão do LIvro da Parnaíba - SaLiPa, marcou o encontro de escritores, professores, músicos, promovendo um oportuno debate literário, artístico e cultural na cidade piauiense, com palestras, lançamentos de livros, rodas de conversas, mesas de debates e shows.

O evento é uma realização da Fundação Dom Quixote, em parceria com o governo estadual através da Secretaria de Cultura.
A edição deste ano teve como tema “Com livros há esperança, e com esperança, liberdade”, e aconteceu no Campus da Universidade Federal do Delta do Parnaíba – UFDPar, com coordenação e apresentação do poeta Diego Mendes Sousa, natural da cidade.
O Delta do Parnaíba é um belo complexo de ilhas, canais, praias, dunas, lagoas, igarapés, manguezais, com cinco saídas para mar, formando um grande santuário ecológico.
Acontecimento como o Salão do Livro, unindo tanta gente em volta da arte, da cultura, da educação, do afeto, segue o desenho e o conceito da natureza de um delta, rumo ao mar onde sempre há esperança para navegar.
É gratificante Trem da memória (Editora Radiadora, 2022), ter chegado àquela estação, e recebido por tantos, como o poeta, editor e fotógrafo Adriano Lobão.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

unidade


 Foto: Edouard Boubat, 1967


Cada dia

tem sua porção de vida
tem sua imensidão de luz
tem sua solidão de gente
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem na terra
a colheita e a semente.
Cada dia
tem seu ontem e amanhã
tem seu silêncio de espera
tem sua largura de saudade
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem no continente
a distância e a cidade.
Cada dia
tem seu mar e os peixes
tem seus barcos e as viagens
tem seus remos e mãos fortes
cada dia
cabe em si mesmo
como cabe no porto
o rumo do sul e do norte.
.............................
Do meu livro Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019)

sábado, 23 de novembro de 2024

fuga e mergulho do poeta


Foto: Lüfti Özkök, 1961


A poesia do romeno Paul Celan é marcada pelo trauma do Holocausto. Judeu nascido em uma cidade que hoje pertence à Ucrânia, Tchernivtsi, seus pais foram deportados para um campo de concentração, onde morreram, e ele preso na Romênia em 1941, onde ficou até 1944, quando as tropas soviéticas desmontaram as imensas cadeias.

O poeta passou a carregar o que se chamava “culpa do sobrevivente”, a “condenação” por ter escapado, viver com as lembranças dos horrores e testemunhado a morte de milhares. Escrever era o exercício de sublimação da alma estilhaçada, em eterna solidão com os fantasmas, pois, como disse em um verso de Cinzas, “Ninguém / testemunha pelo / testemunho”.
Fuga da morte é o poema que mais o identifica com o pretérito atormentado. Escrito em alemão, como toda sua obra, foi publicado em seu primeiro livro, Papoula e memória, em 1948. Paul Celan tinha se mudado para Paris, onde concluiu os cursos de filologia e literatura, iniciados em Bucareste, tornou-se professor universitário, casou com uma artista gráfica, Gisèle Lestrange (1927-1991), e em 1955 teve um filho, Eric Celan, autor de um livro sobre a mãe.
Com longos versos sem pontuação, o poema é de uma grandeza comovente pelo enlevo de imagens translatícias, menções a personagens lendárias e analogias doloridas. São poucos os livros de Celan traduzidos no Brasil. Neste sábado vespertino de lembrança, destaco alguns trechos do citado poema, publicado na coletânea Cristal (Editora Iluminuras, 1999):
- “Leite preto da manhã nós te bebemos de madrugada”, referindo-se à fumaça dos crematórios;
- “quando escurece à Alemanha teus cabelos de ouro Margarida”, em alusão à jovem que na obra de Goethe seduz Fausto com joias materializadas pelo demônio;
- “nós cavamos uma cova nos ares lá não aperta”, sobre os mortos que dos fornos subiam aos céus e os jogados em covas coletivas.
O título do poema indica uma curiosa similaridade estrutural. As seis estrofes dispõem o ritmo de uma fuga, o estilo musical barroco. Um verso se anuncia como uma voz, que se remete mais à frente sobre outro verso e se encontram mais adiante com outros versos, formando vozes de um coro sobre o mesmo tema. As vozes de todos nos campos de concentração sob o mesmo destino.
Hoje, 104 anos de nascimento de Paul Celan.
Ele tinha 49 anos quando mergulhou para sempre nas águas do Rio Sena. Como apagando-se dos crematórios.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

domicílio


 O meu poema, a música de Charles Wellington, o traço de André Dias.

Todos domiciliados no mesmo espaço do afeto.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

a imortalidade de Rosa

 Foto: Arquivo Público Mineiro / Acervo DIMUS – Museus Estaduais de MG

Em 1957 Guimarães Rosa se candidatou à Academia Brasileira de Letras, mas obteve apenas 10 votos. Tentou outra vez em 1963 e foi eleito por unanimidade, ocupando a vaga do gaúcho João Neves da Fontoura. Mas o escritor não tomou posse de imediato. Tinha uns medos, umas crenças, e achava que poderia se sentir mal de tanta emoção. Adiou por quatro anos.

Quando se considerou seguro, acertou com a Academia para assumir a cadeira no dia 16 de novembro de 1967. Tinha ido ao México no começo do ano representar o Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, publicou em agosto o livro de contos Tutaméia – Terceiras histórias, participou do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap, e por iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos seria indicado ao prêmio Nobel... Estava entusiasmado! Fecharia o ano empossado na Academia.
Em seu discurso, fazendo uma referência à imortalidade que o fardão consagra, disse que "...a gente morre é para provar que viveu". Uma fala com acento aforístico que caberia numa conversa de Riobaldo com seu compadre Quelemém.
Três dias depois, na manhã de um domingo, Rosa sofre um infarto em sua casa, em Copacabana, e falece, aos 59 anos. Estava sozinho, sua esposa, dona Aracy de Carvalho, tinha ido à missa.
Como pedira aos familiares, foi enterrado com seus óculos de míope. O semblante final como
Um passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?,
perguntou e definiu Drummond em um trecho do poema a ele dedicado, Um chamado João, escrito três manhãs depois da partida do amigo e publicado no jornal Correio da Manhã.
Neste dia 19 bem cedo antes do café fui à estante e folheei o exemplar de Grandes Sertões: Veredas, que li pela primeira vez, com imensa perplexidade e encanto, na época da faculdade de Letras. As páginas quase todas sublinhadas e com observações laterais – hábito de dialogar com a obra e o autor que me fez sentir cumpliciado ao saber que Pedro Nava fazia o mesmo.
57 anos hoje que Rosa provou que viveu. Tenho dessas saudades de quem nunca vi e sempre amei na intimidade da leitura.

domingo, 17 de novembro de 2024

a liberdade é uma estátua


O título desta postagem é uma fala da peça Deserto, baseada nas memórias e em fragmentos de diferentes obras de Roberto Bolaños (1953-2003). Apresentada recentemente no Festival de Teatro Cena Contemporânea, em Brasília, o monólogo na interpretação visceral e comovente de Renato Livera, aborda os últimos anos de vida do escritor chileno, diagnosticado com uma doença hepática crônica.

A primeira imagem que me veio ao ouvir a fala na contextualização cênica, foi a sequência final do filme Planeta dos macacos (Planet of the apes), de Franklin J. Schaffer, 1968.


Clássico da ficção científica, conta a história de uma tripulação espacial que depois de muito tempo hibernada na nave, pousa em um planeta parecido com a Terra, dominado por uma civilização de macacos, já no adiantado e inimaginável ano 3900. O planeta é a própria Terra, sem vestígios de seres humanos, e numa curiosa inversão, tem os símios como seres inteligentes, poderosos e bélicos.
Charlton Heston interpreta o astronauta George Taylor, sobrevivente que enfrenta a raça dos macacos falantes em busca de respostas para aquilo tudo. Heston, que já tinha sido salvador da humanidade como Moisés em Os dez mandamentos, o lendário herói espanhol em El Cid, o judeu libertário em Ben Hur, não foi à toa que a Century Fox o escalou para mais um papel de Messias-reloaded.
Depois de muito embate com os macacos, Taylor em uma fuga que extasiava a plateia, em desesperado galope à beira-mar, dá de cara com a Estátua da Liberdade, afundada parcialmente na areia, a tocha apagada em suspiro final. Uma das imagens mais impactantes da história do cinema.
O personagem ajoelha-se e sucumbe à dor. A cena resume toda a certeza que a humanidade estava ali disseminada, coagulada na mais grave desesperança. Hollywood, como fábrica mágica de sonhos e pesadelos, elipsou o apocalipse em uma cena extremamente simbólica, não somente por sabermos da cidade de New York sumida do mapa, mas de toda a população da Terra literalmente enterrada com a estátua presenteada pela França.
Naquela noite ao sair do teatro, a realidade lá fora anunciava Donald Trump como 47º presidente eleito dos Estados Unidos.
Enquanto andava sob uns discretos pingos de chuva deste novembro brasiliense, um trecho da fala de um personagem do livro O gênio e a deusa (1955), do visionário Aldous Huxley, juntou-se às minhas reflexões, perplexidades e temores, no entrelaçado encontro da peça, do filme e da realidade: “O mal da ficção é que ela faz sentido demais. Em seu estado bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas”.
Parece que assim caminha a humanidade naquela praia em direção à liberdade, que é uma estátua. 

 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

a última quimera


Em 1912 Augusto dos Anjos lançou Eu, seu único livro, que reúne 58 poemas, todos em versos rimados e numa magnífica composição de decassílabos. Mas a publicação não agradou à crítica nem à classe conservadora. A literatura brasileira estava marcada pelas escolas simbolista e parnasiana.
O poeta paraibano usou a erudição como modelo formal, mas transgrediu no conteúdo, adotando uma linguagem com vocabulário científico para expor suas angústias existenciais. Sofrimento, pessimismo, tremores noturnos, podridão moral, morte, decomposição física, eram temas que não cabiam na elegância dos saraus de lirismo comedido.
Augusto dos Anjos passou por grandes dificuldades financeiras. Formado em Direito, nunca exerceu a profissão, sobrevivia lecionando Literatura no Liceu Paraibano, em 1910. Quando tentou transferência para o Rio de Janeiro, em busca de melhores condições, o governador João Lopes Machado negou o pedido. Augusto demitiu-se e foi embora com sua esposa, Ester Fialho.
Indignado, dizia que a injustiça social era solícita em premiar os ruins, dourar as falcatruas, entronar os endinheirados e avaríssima com os honestos e os sonhadores. Com a alma atormentada, sem emprego fixo, o poeta sacrificava-se dando aulas particulares. Tinha dois filhos, muitas dívidas e poucas esperanças.
Vislumbrou uma melhora de vida quando se mudou com a família para Leopoldina, em Minas Gerais. Por influência do cunhado, foi nomeado diretor de um grupo escolar. Mas cinco meses depois adoeceu, contraiu dupla pneumonia e faleceu em 12 de novembro de 1914.
Versos íntimos, seu poema mais conhecido, é no mesmo fôlego epígrafe e lápide de seus curtos e intensos 30 anos de vida com o coração cheio de pesares. Um soneto de insólita combinação paradoxal da finitude humana.
Nesta manhã, quando cedo me veio à lembrança sua história, fui à estante - esses passadiços horizontais em que se guardam dorsos verticais do tempo - e peguei o livro para folhear poemas em homenagem íntima, solitária, marejada. Imaginei como teria sido sua despedida.
Poucos devem ter assistido ao seu enterro no Cemitério Nossa Senhora do Carmo, em Leopoldina. "Somente a Ingratidão – esta pantera – / Foi tua companheira inseparável!”.
A vastidão dos prados mineiros foi sua última quimera.
Foto: autor desconhecido, 1912, Acervo Biblioteca Brasiliana Guita, São Paulo.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

o que escrevo me entrega


Bússola, do meu livro Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019), parte 1, Explorar as tardes.
Com a primeira edição esgotada, a Editora está providenciando uma nova tiragem.
Coordenação editorial, Alan Mendonça; prefácio, Carlos Emílio Correia Lima; desenho da capa, Fausto Nilo. 


 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

velas da memória


O escritor e engenheiro mecânico naval inglês William McFree (1881-1966), que se dedicava a pensar viagens e oceanos em seus livros, condicionava que "O mundo não está interessado nas tempestades que você encontrou. Querem saber se trouxe o navio”. Lembrei-me dessa máxima ao terminar a leitura de Velas náufragas (Editora Penalux, 2019), do poeta piauiense, e agora também brasiliense, Diego Mendes Sousa.

Dividido em Opus e seus cantos e líricas, o livro é de uma preciosidade narrativa encantadora, de fôlego único pelas águas e costas de cada verso. Há uma condução interna e estética de movimentos das marés nesse memorial litorâneo e barroco. Diego constrói no longo poema, na estrutura mítica de uma caravela, o seu épico íntimo de marinheiro poético em sua natal Parnaíba, onde o Delta é o único em mar aberto para as Américas. Os versos de seus olhares iniciais foram quando o autor tinha “a idade eternal de Castro Alves”, como aponta no primeiro poema, Seres aladinos, e tem ele a precocidade de talento do seu conterrâneo Mário Faustino.

“Peixes, / Caranguejos, / Cavalos-Marinhos, Camarões / Tartarugas, Siris”, “Carnaúbas / Coqueiros, Cajueiros, Pedras, / Ventos, Mares, Mangues, Lagoas, Rios, Xananas”, toda paisagem de alma litorânea habita a vida do poeta e sua infância que se espalha pelas páginas molhando os pés do leitor. Todos esses seres, vistas e horizontes que Diego grafa em maiúsculas, dão a importância merecida dos nomes próprios, a mesma referência e reverência a Evandro Lins e Silva, Assis Brasil, Alberto Silva e dezenas de outros citados pela devoção do autor. O coração do poeta “é uma inscrição / precisa ao evocar os seres aladinos”.

Mas é no arquétipo dos caranguejos, dos siris, das lagostas, que Diego atesta e solidifica “o amor sublimado predestinado” do poeta nas águas barrentas e seus afluentes de inspiração. Foram esses pequenos seres de carapaça dura que “ensinaram-me a nadar / na solidão dos dias emirados sob as águas”, designa o autor na sua anatomia existencial. Todos diante do “horizonte fascinante” entre o rio Igaraçu e a Serra da Ibiapaba.

Assim como os navegadores antanhos Nicolau de Rezende e Gabriel Soares de Sousa adentraram o delta, o poeta legitima e destemidamente palmilha “arcaicos tombos imemorais / a sina destina-se ao fim / de tudo:”, o filho desvanecido que é de seu chão sagrado e sua poesia vivendo “da espinha dos peixes”, “do sal privilegiado dos camarões crescidos” e do “batuque do bumba-meu-boi” que por lá os povos inventaram e dançam. “Eita boi, / boi... Eita boi, boi”, eita poeta “que vive do seu / sopro de mar” e ventos das dunas.

Se “O amor é como um chão de neve também horizontal”, Diego Mendes Sousa edificou com os alicerces de seu coração a cidade imaginária Altaíba, geografia afetiva onde somente ele reside ao lado do “amor transcendido dos / mangueizais femininos da Altair”. O poeta sedimenta em sua alma litorânea um burgo muito mais distinto do que Pasárgada, onde Bandeira era amigo do rei e escolheria uma mulher; urbe mais eterna que Itabira que se tornou apenas uma fotografia na parede e como doía em Drummond; aldeia muito mais polida do que Macondo, onde García Márquez viveu sua solidão centenária. A cidade do poeta é conjugação no indicativo presente, “atmosférico / e intensamente marítimo”; está em Parnaíba como está no mundo, está em Altair como está em Diego.

O poema no livro não acaba nunca porque o autor volta sempre ao “coração dos mangues”. Meu texto não termina aqui porque continuo içando velas onde me encontro ao auscultar o “coração costeiro” do poeta.

Ao contrário do que sentenciou William McFree, Diego Mendes Sousa trouxe o navio e contou as tempestades que enfrentou. Caranguejos, siris, tartaruguinhas e tudo mais, agrupados na praia para ouvir as histórias de além-mar.



 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

o sopro da poesia


Foto: Altair Marinho

Nirton,
Você como alto poeta que é, sabe como ninguém que realmente a poesia é provisória.
A poesia sopra, acha o tom, revela a voz e vai embora. É uma hóspede do poema e a febre do poeta.
Li Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019) com os olhos acesos, captando o rastro da poesia que lhe assalta o sentir. Seu livro está prenhe de sentimentos. Comoveu-me.
Você disse em Viés:
O poeta percebe
de forma estranha.
Por isso percebe.
Mais do que a percepção é a revelação do existir. Sua poesia é de vida vivida e de tempo temporão.
É do seu estro Turnos:
Os poetas
dormem tarde.
A poesia
é que acorda cedo.
Mui belo isso!
O poema Quimera, isso, sim, é boa imagem:
---------------O-lençol-no-varal---------------
é sempre
um poema
ao
vento...
Minha admiração,
Diego
.
Fortuna crítica e afetiva de um dos maiores poetas da literatura brasileira contemporânea, Diego Mendes Sousa.
Com a primeira edição esgotada, a Editora está providenciando uma nova tiragem.
Coordenação editorial, Alan Mendonça; prefácio, Carlos Emílio Correia Lima; desenho da capa, Fausto Nilo.