sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

aguardo

foto Lars Ihring

Quando você voltar
estarei com braços
abertos
o coração
exposto
os olhos
sorrindo.

Os meus beijos
secarão suas lágrimas
o meu corpo
aplacará sua febre
e nossas noites
iluminarão os dias.

O que é saudade
será sempre a festa de volta.

(Do livro “Poesia provisória”)

domingo, 11 de dezembro de 2005

descobrindo Manoel

foto Juan Esteves
  
para Manoel de Barros
 
Invento descobertas
no meio da escuridão.
Manoel diz que nos alimentamos
de escuros.
Quando tudo era nada.
Quando ainda somos nada.
Quando precisamos nos descobrir.
Manoel tem razão,
não:
Manoel tem coração,
sentado lá sob sua luz
em algum escuro do pantanal.
Manoel tem coração,
não:
Manoel tem razão,
inventando palavras
inventando descobertas.
Manoel de tão verdadeiro
é invenção minha
é descoberta minha.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 29 de novembro de 2005

fase única

foto Chip Hooper

Todas as noites
tem lua cheia no meu coração:

clara clareia meu peito
derrama demais sua prata
em meu chão.

 
(do livro “Poesia provisória")

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

viveiro

foto Hoffman Nicolas
Meu jogo é com a vida
com o que ela
guarda dos meus olhos
no momento em que mais preciso
de luz sobre os meus cabelos.

Não preparo minha roupa
diante do espelho
para a surpresa da morte
(ou escuro que o valha):

preparo-me (sim!)
a cada instante
para a claridade do dia
(ou surpresa que me complete)
e traço sereno
os moldes de minha pele
sobre o coração
que é um pássaro solto
dentro de mim.

(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

sobre viver

nanquim sobre papel, Gil Vicente

só escaparemos se conversarmos
se sentarmos à mesma mesa
e trocarmos olhares
como amigos
ou sobreviventes.

(do livro “A distância e a paisagem – Brasília e outras viagens”)

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

atemporal

foto Michel Touraine


Quando você chega
não é mais noite nem dia
- é alguma estação longe dos calendários.

O tempo e o corpo avançam
mar a dentro da gente
onde a única lembrança
(se saudade fosse)
é a de quando éramos estranhos
em algum porto da cidade.


(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

grito

foto Olga Gouveia


Quando esse grito
sair
romper as paredes
descer as escadas
tomar as ruas

e soltar bem alto teu nome

assustarei
a cumplicidade da ausência
e da distância
que contra mim conspiram.

(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 13 de novembro de 2005

migrante

foto Lars Ihring

I

em que acreditar
além da cidade onde queremos morar
e em sua direção
afivelamos nossas malas
(com roupas e retratos)
enchemos nosso peito
(de esperança e saudade)
abrimos nossos olhos
(de horizonte e espanto)?

em que acreditar
nessa (qualquer) cidade
construída de concreto e traços
além da argamassa dos nossos sonhos?

mas se na cidade
cabe a pedra
cortada em mil pedaços sobre a solidão
caberá (muito mais)
a nossa vontade
solta em muitos corações e braços
povoando a paisagem e a distância.


II

o que faz uma cidade crescer
sob o sol
sobre o peito
dentro do homem?

o que faz um homem crescer
sob o sol
com dor no peito
dentro da cidade?



III

o que é uma cidade
na história de
um homem?
não se sabe ao certo
como não se explica
por que esse homem respira
e o que alimenta
tantos desejos

a cidade
(no final das contas
e das ruas)
é mistura confusa
de susto e alívio
que abraça e larga
nossa carne
como quem ama e desaparece

apesar dos desenhos
que orientam o presente
a cidade
é o mistério
sobre a cabeça desses animais
que caminham sobre passos
novos a cada desejo
grandes a cada abraço
profundos a cada vontade.

(do livro “A paisagem e a distância – Brasília e outras viagens")

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

regime

foto Jonnie Miles

Tenho seus beijos
como medida.
Não ponha açúcar no café.

De doce basta a vida.

(do livro “Raios”)

quarta-feira, 9 de novembro de 2005

solo

foto Sascha Hüttenhain

Agora que chorei todas as dores
desse e de outros amores
que rimei nosso caso com circo de horrores
e fiquei olhando sobre o mar
um tempo que se foi...

agora que alguns amigos viajaram
e alguns outros que ficaram, saíram...

agora quando me deparo com o espelho no corredor
pergunto sem esperar resposta:
quando continuo senão agora
que tenho o saldo de algumas horas
e restam algumas roupas no armário
e novos mapas traço no vão da sala?

Quando senão agora
quando me resta o descompasso desse tango solitário
estrada afora?

(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 6 de novembro de 2005

hábito

foto Alberto Monteiro

I
As horas cortam o pulso
friamente
e (ainda) não aprendemos a estancar
o sangue
que de tanto correr
transborda os dias.

II
Sobre a pele solitária e nua
o tempo se estende
(sem encalço)
a caminho das rugas
e é preciso (agora!)
o gosto eterno
de cada instante
na porosidade dos lábios.

III
O que se passa lá fora
(bem adiante do nariz)
é tudo que se pode pegar
apesar das mãos tão curtas
e do coração aflito.

IV
De espanto já é feita
nossa roupa
caída
sobre
os
ombros:
nos cabe este grito
e este jeito (quase) suicida
de
atravessar a escuridão quando
abrimos os olhos.

V
As ruas estão marcadas
com o calor dos sapatos
e (nelas)
circundam os homens
que perderam nos dedos
a idade
e trazem no peito
uma história
e a distância das ilhas.
VI
Todos acumulam conversas
com seus botões
agarram-se aos olhares
na solidão disfarçada sobre o tráfego
e (entre os habitantes)
a tarde
cai
como quem de cansaço adormece
ao longe.

VII
Mas o hábito
de viver
reconstrói as nuvens
e ergue as cidades.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 1 de novembro de 2005

cumplicidade

foto Annie Brigman


O melhor momento
é ser contigo sempre
pois não se larga uma parte de si
não se parte da largura de si.

(do livro “Poesia provisória")

sábado, 29 de outubro de 2005

vertical

foto Christian Coiqny

O que existem são os meus olhos
numa dimensão
onde os meus sonhos não frustrem os meus pés.
Porque existem os meus pés
e a terra entranhada
e a canção seca dos homens.

Joguei-me do fundo de todo lugar distante
que deu nesta rua abismal.

Das raízes dos dedos dos pés
trago flores nas mãos
e segredo e cuidado.
Não tenho amor platônico pela vida:
nasço e morro exatamente hoje.
Sou marinheiro que parte:
cada dia é um porto que fica.

Ameaçam-me atear fogo
às vestes e às paixões
se eu não calo o canto
se eu não sigo as setas
se eu não cesso os beijos
isso
quando mais ardem
dentro e fora de mim
as vestes e as paixões.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

sexta-feira, 28 de outubro de 2005

mímica

foto Bogdan Jarocki


Os gestos lentos das mãos
somem com as máscaras no rosto
dia
após
dia:
até nada mais restar
sobre os ossos da face.

O destino das vértebras
sabe dele o chão

e
dos pensamentos
fica nos outros
o que passou pelo coração.

(do livro “Poesia provisória”)

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

desmontando as tardes

foto Mario Di Biasi

Eu podia ver o circo da janela do terceiro andar. Ali defronte, no terreno por onde os cachorros circulavam. Nunca desci nas tardes de sábado e manhãs de domingo para assistir a uma das sessões anunciadas no serviço de som que arranhava os ouvidos. Não porque era um circo pequeno: o que eu gostava mesmo era ver da janela do terceiro andar.
Um dia começaram a desmontar o circo. Foi quando me lembrei que dias antes anunciaram a última semana com atrações imperdíveis. Desmontavam o circo e desfaziam-se também minhas chances de assistir alguma apresentação se eu mudasse de idéia e descesse as escadas rumo à bilheteria. Da janela acompanhei por quase o dia todo o circo se resumindo a uns poucos caminhões velhos amontoados de tábuas, lonas, grades... e pessoas sonâmbulas sob o sol de segunda-feira.
Minhas tardes passaram a ser mais solitárias no retângulo da janela: não me importava o espetáculo, o que depois aconteceria à noite no picadeiro: o que me segurava os olhos era a vida ao redor da lona suspensa. Eram os artistas sem suas roupas de artistas, as pessoas comuns vivendo na temporalidade dos trailers, no improviso dos lares. Eram os animais tornados comuns na pouca extensão das jaulas. O melhor era aquele espetáculo, que me extasiava e incomodava, visto do meu camarote especial da janela do terceiro andar, tão longe e tão perto.
O circo foi embora e o melhor poderia ter sido mesmo partir: viajar sem ter um passado nos álbuns, ou um futuro agendado. Viajar tendo sempre só o presente que dura algumas semanas, poucas vezes uns meses, nunca muitos anos. Viajar na busca eterna do presente.
As estacas não criam raízes no chão da cidade.

(do livro "Outras prosas")

quarta-feira, 26 de outubro de 2005

ventania

foto Michael Kenna

O vento forte da vida
assanha os meus cabelos
molda o rosto
apaga os passos.

Mas

a minha existência
não se limita ao tamanho do corpo:
tenho todo um rosário de dias
e amores que estendem os braços
como se fossem mágicos,
e olhos que atravessam o mar
como se fossem pássaros.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

segunda-feira, 24 de outubro de 2005

persona grata

foto Farrokh Chothia
Gratifica-me ver teus olhos:
pássaros castanhos
que voam longe de mim.

Gratifica-me ver teu rosto:
moldura morena
que se guarda longe de mim.

Gratifica-me ouvir tua voz:
teclas de piano
que tocam longe de mim.

Gratifica-me teu jeito de andar:
ave-elegante
que passeia longe de mim.

Gratifica-me sentir tuas mãos:
gestos de plumas
se chegassem perto de mim.

(do livro “Poesia provisória")

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

medida

foto Jean-Sebastien Monzani

Caberão no poema
quando
soltos,
os beijos


quando
largos,
os abraços

quando
estradas,
os passos
?


(do livro “Poesia provisória”)

sábado, 8 de outubro de 2005

presença

foto Cig Harvey

Vivo em ti
todos os momentos de mim.

(do livro “Poesia provisória”)

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

per si

foto Alberto Monteiro

Não quero teu verso enteado
na minha poesia.
Não se meta onde é chamado.
Faça de conta
que não escuta os meus apelos
e me deixe encontrar
esse endereço errado.

Quero meu desencanto legítimo
e esse beijo desfazendo a azia.

Não me venha com tradução simultânea
para música que me castiga.
Não me meta onde sou cantado.
Faça de conta
que não entende esse estrangeiro
e me deixe desencontrar
esse futuro passado.

Quero o ronco do meu íntimo
e este coração que a alma mastiga.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

argumentos

foto Alberto Monteiro

Basta eu estar vivo
para que eu possa me procurar.

Para que
me baste vivo
ando abrindo os olhos
para enfrentar as esquinas,
me armando
de argumentos
para me manter
vivo
sob as novidades que invento,
de algumas definições
para essas
manhãs
de sóis que espero,
de alguns lenços
para essa
saudade
do rosto que guardo,
de algumas flores
para esse
amor
que a cada dia é forte,
de algumas irreverências
para essas
ordens
gerais sobre a cidade,
de algumas roupas
para esse
frio
nos ossos da alma,
de alguns papéis
para essas
cartas
que nunca respondem.

Basta eu estar vivo
para que me possa
carregar.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

sábado, 1 de outubro de 2005

janeiros

foto Maurício Rolo


A cidade.
O que é esta cidade, nova,
senão o meu berço desfeito em outras paredes?
o que é esta distância
(medida a olho e lágrima)
senão o tamanho que me separa do riso
e da dúvida?

Fazer desta casa
:os mesmos tijolos de antes

os parentes seguiram no tempo
envelheceram
e desfolharam os janeiros no quintal
a casa encolheu suas paredes
feito as rugas na pele dos avós

as paredes envelheceram no tempo
seguiram
e encolheram os janeiros no quintal
a casa desfolhou seus parentes
feito as rugas na pele dos avós

fazer desta casa
:os mesmos tijolos de ontem.
(do livro "Trem da memória")

sexta-feira, 30 de setembro de 2005

longes

foto Bill Peronneau

em algum lugar
o mar existe
para algum porto
ser avistado.
(do livro "A paisagem e a distância")

quarta-feira, 28 de setembro de 2005

postura

foto Tomasz Wojnarowicz


Cada gesto posto no espaço
me subtrai (um pouco) a intimidade.

Mas não há como negar
o tamanho do rosto
e esconder-se da luz diante do espelho.

Tenho (sem saída)
a vida presa aos pulsos
o corpo atracado ao tempo
levando-me neste soluço constante
nesta postura indecente
nesta vontade (sempre!)
de ser feliz.

A idade é pouca
sobre a carne que preciso ter
para descobrir o que esconde
o silêncio de amanhã
e me deixa com as mãos
curiosas
os sentimentos
acesos
o coração
(in) quieto.

Por isso
no estrondo dos dias nas ruas
na solidão das cercas na noite
mantenho o olho aberto
pastorando (e me resgatando a)
cada instante
em que a vida não cochila.
(do livro "Poesia provisória")

domingo, 25 de setembro de 2005

suspense

foto Davis Fokos


Que viagem é essa
(que fazemos)
durante dias
noites
e eclipses
dentro de um corpo
(vagarosamente)
para frente
(que não vemos)?

Existirão braços abertos
ou abismos estendidos
no final de nossos olhos?

Haverá festa
luzes
bandeiras
gente na estação?
Haverá (depois)
tranqüilidade
planície
sonho

ou
solidão?


(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 20 de setembro de 2005

anônimo

foto Nicholas Davies

Eu nunca deixo pistas dos meus pecados.
Escondo meus delitos
e deixo a condenação para a volta.
Estou muito apressado.

Eu nunca deixo atalho
para me descobrirem:
prefiro o próximo encontro
com o que encontrar próximo aos meus olhos.

Eu nunca deixo traços dos meus planos.
Deixo o resultado de tantos enganos
como pudesse ser também seu
aquilo que foi somente meu.

Não passo procuração para sentimentos
enquanto viajo para lugar desconhecido.

Este poema pode me custar a vida.
Pode me custar os amigos.
E me gostarem os inimigos.

Mas não deixarei rascunho dos meus reversos.
(do livro "Poesia provisória")

domingo, 18 de setembro de 2005

dimensional

foto David Fokos

A vida é larga
o mundo extenso

e minhas mãos indefesas
se entregam ao ofício de modelar
cada dia
afagar cada
rosto
segurar o remo quando a tempestade
avançar
sobre
nossos cabelos.

Por enquanto
a vida é larga
o mundo extenso

e a minha estranha forma humana
(escondida sob as roupas e as máscaras)
caminha entre os instantes
em que o relógio
divide
a dor e alegria
na pulsação que espanta a fragilidade
do corpo
e do coração.

Sei que no percurso
a vida é larga
o mundo extenso

e o chão do país
arde quilômetros sob os meus passos
as estrelas
faíscam distantes sobre minha cabeça
e a gravidade
dos fatos
(e dos tatos)
me põe em pé
enquanto a terra flutua no espaço
(solenemente)
carregando seus animais.



(do livro "Poesia provisória")

quinta-feira, 15 de setembro de 2005

vespertino

foto David Fokos

Dói
este cotidiano gesto
de ser poeta
e explorar as tardes
com seus terrenos e suas nuvens.

As tardes
(que chegam cedo)
se diluem
lentamente
em mormaço
e solidão
ao longo (e bem dentro) das retinas
acesas.

Fica do lado de cá
a lembrança do dia
com sua poeira e seus passos
sobre
o coração.

(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 14 de setembro de 2005

idade

foto Peter Grasser

Não temos (somente) a nossa idade
o espaço que se conta nos dedos:
temos o tamanho de nossos pais
nossos avós
bisavós
e todos vós que ecoam nos séculos
- somos centenários
e trazemos a lua e o sol
como herança

O sangue correu nas veias
no tempo
se estendeu na pele
e onde se guarda o coração
das pessoas.
Somos em cada pedaço de hoje
parte de um rio
movimento de emoções
que desemboca (feliz) em cada futuro.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 12 de setembro de 2005

abolerado

foto Leoni Oostvogel
Vagueio dentro do quarto
enquanto meu
coração
passeia longe de mim
e me reparto
entre
o começo e o fim
desta noite em que espero
notícias do dia
no alvorecer que teus olhos dirão
outro grito
outra emoção
que não seja este bolero
em que meu corpo se com
passa
vaguei
ando comigo dentro do quarto
en
quanto meu coração ultra
passa
fronteiras de luzes e portas
para chegar bempertopertode ti.

(do livro "Poesia provisória")

domingo, 11 de setembro de 2005

abstrato

foto Bill Peronneau

No tempo tudo cabe
tudo muda de lugar
tudo some
não ficam parados no espaço
o gosto das frutas
e o cheiro dos homens.

O tempo dispensa a vontade alheia
impõe-se sobre a selva e a cidade
e destas nascem as folhas e os filhos
que o próprio tempo amadurece e faz saudade.

O tempo – enorme! – eleva os deuses
arrasta os homens
e espalha o mistério de uns
sobre a solidão dos outros.

De muito longe o tempo caminha
não como um velho
tão pouco uma criança:
unicamente caminha
- e sugere a esperança
e adormece as rugas.

O tempo não é o mesmo
sobre os aviões e os pássaros:
nas asas de um
é tudo muito rápido
nas asas do outro
é tudo muito livre.

 
(do livro "Poesia provisória")

quarta-feira, 7 de setembro de 2005

trechos

foto Ailine Liefeld

Tudo foi (tão) de repente
diante dos meus olhos
que não houve tempo
para retornar ao corpo do menino
que brincava na calçada.

A memória viaja
-trem inútil-
e não traz as roupas
que se vestia nas tardes de domingo
e a estrada some
deixando o mundo
como um grande circo
na praça da estação.
(...)
Mas o menino sumiu:
foi embora como quem cresce
e silenciosamente
atravessou os trilhos noturnos
da ponte de ferro
sobre o rio poty
onde as águas são barrentas
e as lavadeiras tristes.

Ninguém sabe do menino:
saberiam alguma notícia
se soubessem dos meus sonhos
de voar nas asas do bimotor
que pousava como um pássaro barulhento
nas tardes quentes do interior
(ali)
longe das feiras
rumo ao silêncio dos planetas
onde outro avião (de plástico) nunca chegou.

Não foram dados ao menino
nem os planetas
nem os presentes de todos os natais.
Aos poucos
esperava o mar com sua solidão
e em cada porto
uma cidade para atravessar.

(trechos do livro "Trem da memória")

segunda-feira, 5 de setembro de 2005

breu

foto Karez

A noite é o real do planeta:
o sol não é aqui
os fogos são de artifícios.

O dia é uma mentira.
(do livro "Raios")

sábado, 3 de setembro de 2005

vice-versa


foto Tim Flach

Sou
comprido
e sem solução:
tenho
os dois pólos
caminho teimoso
do norte ao sul
dos pés à cabeça
passando pelo mistério do coração
sou astronauta
e uso gibão
cavalgo curioso
da via-láctea ao sertão
e vice-versos
na minha
solidão.


(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 30 de agosto de 2005

saara

foto Christine Cavanna

Uma coisa
é ser sozinho por opção.
Outra, por solidão.

O lugar comum é o coração.

(do livro "Raios")

segunda-feira, 29 de agosto de 2005

minh'avó

foto Henri Cartier-Bresson
 

Minh’avó caminhava pela grande casa.
Minh’avó muito pequena, até um dia desses,
caminhava pela grande casa.
Continuava com seus passos
seu cansaço
seus laços.
Minh’avó alterou a lei da física:
carregava no seu espinhaço tão frágil
décadas décadas décadas
datas datas datas
dias dias dias
carregava festas
aniversários
e algumas compras
carregava guerras
revoluções
e algumas brigas.
Teimosa, não se dava conta de toda essa carga
e olhava pela janela
o automóvel na rua
a moça na calçada
e ninguém mais em direção à igreja.

(do livro "Trem da memória")

quarta-feira, 24 de agosto de 2005

o morto

nanquim sobre papel, Gil Vicente
I
O morto
tomou destino ignorado:

em que planície nos céus
sibila o seu silêncio?

Com sua armadura desfeita
o que resta é inútil:
não suporta o vento
(que sopra com a chuva)
não será restaurado nos museus
(que espiam a história)
nem se moverá com as lembranças
(que amontoam os retratos).

O morto
tomou destino ignorado.

II
Não tenham medo:
o morto não se levantará
de sua solene posição

deitado como nunca
com seu nariz e seu sapato
em
riste.



III
O morto
(saibam)
não segue no cortejo:
segue um morto
(peso inútil)
que o limite do nosso olho vê.

IV
O morto independe da vontade
dos que lhe jogam areia e flores
dos que lhe dizem orações e calam
dos que choram e esquecem
- o morto
agora
é eterno.

V
Lembramos o tamanho do morto
com suas roupas
com sua voz
com sua dor
e choramos o tamanho que falta
a lágrima que salta
em nós
até quando aprendermos
a não ser somente vivos.


VI
De nada mais sabemos
até que o morto nos mande notícias
e que seu vulto passe ao longe
como passam os viajantes
(depois)
do entardecer.

VII
Maior é o morto
na viagem
que ele continua


(em que planície nos céus?).


(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 16 de agosto de 2005

promessa

foto Mona Kuhn


Ela disse
que me amaria para o resto da vida.
Ela me disse.

Como a vida é curta.

 
(do livro "Raios")

sábado, 13 de agosto de 2005

armadura

foto Mário Cravo Neto
Meu corpo é a única coisa que tenho
que é nada
e como suicida
luto contra moinhos, tempestades e solidão
que é tudo.

Escondo-me nesta armadura de ossos, carne
e vestimentas
e espio a vastidão do mundo pelos buracos dos olhos
como quem espia lugares estranhos
infinitos
perigosos.

Meu corpo é a única coisa que tenho
para carregar o pretexto da alma.
É magro, feio e escandaloso
o corpo
mas é única coisa que tenho
para caminhar pelo tempo e pelos sertões.

Garantia não tenho
se o meu corpo é forte e frágil ao mesmo instante
se sujeito-me ao abismo
ao chão
à poeira
se estou marcado para me tornar saudade
lembrança
e fotografias
e minha história não terá mais
um cavalo para montar
e serei uma estátua invisível no espaço.


Garantia não tenho de nada
nada
não levarei escondido no bolso
nenhuma semente
nenhum suspiro
nenhum gesto
pois tudo é podre
condenável
consumível.
Só é garantido o mais difícil:
a miragem na imensidão
o que se supõe ao longe
o completo mistério
para se chegar até lá
não se sabe com que corpo
não se sabe com que asas
não se sabe.

(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 9 de agosto de 2005

domicílio

foto Missy Gaido Alleen

Não me procure nesse endereço:
meu coração mudou-se.
Pouco resta do antigo inquilino.


A casa está vazia.
 
(do livro "Raios")

segunda-feira, 8 de agosto de 2005

simetria

foto David Fokos


O estender do mar é como o impossível:
o lado de cá
é
sempre
o infinito do lado de lá.

E entender de amar é como o impossível:
o meu lado de cá
é
sempre

o infinito do teu lado de lá.
 
(do livro "Poesia provisória") 

domingo, 7 de agosto de 2005

asas

foto Bruce Taj


Tirem-me a roupa
o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
que criei pra mim

tirem-me o domingo
a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
que criei pra mim

tirem-me os lábios
o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
que criei pra mim .
(do livro "Poesia provisória")